Revista CadernoS de PsicologiaS

Primeiro socorro psicológico na era dos extremos

Marcos de Jesus Oliveira
Psicólogo (CRP-08/35382)
Doutor em Sociologia. Docente na Universidade Federal da Integração Latino-Americana
E-mail: oliveiramark@yahoo.com.br

#Resenha

Everly Jr., G., Lating, J. (2017). The Johns Hopkins guide to psychological first aid. Baltimore: Johns Hopkins University Press.

O historiador Eric Hobsbawm descreveu o século XX como uma “era dos extremos” marcado por catástrofes que destruíram os “mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas” (1995, p. 13). A sensação de “eterno presente” seria uma das características mais sobressalentes da época atual com a perda da relação orgânica entre as gerações. O ofício de historiador, mais importante do que nunca, consistiria em lembrar à sociedade o que ela esquece. Em sua defesa pelo não-esquecimento de determinados fenômenos históricos como essenciais para entender o presente, o historiador inglês sugere que o século XX não começou em 1901, mas em 1914 com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. A evocação das ideias de Hobsbawm na apresentação desta resenha pretende conduzir os que leem a refletir sobre a relevância de situar seu tema, a saber, o primeiro socorro psicológico, atualmente tão debatido no Brasil por conta da pandemia SARS-COV-2/COVID-19 e por conta da tragédia climática que assolou o estado do Rio Grande do Sul, num quadro histórico de referência mais amplo, como consequência dos traumas da Primeira Guerra Mundial. 

A despeito de trazer a Primeira Guerra Mundial como um quadro de referência para o desenvolvimento do primeiro socorro psicológico, é preciso estar atento ao fato de que não se deve contar a história a partir de um ponto de vista absoluto, evitando o que Chimamanda Ngozi Adichie (2009) chamou de “o perigo de uma história única”. Cabe ao historiador e, mais especificamente, ao profissional de psicologia que se dedica a contar a história de sua ciência e de suas práticas, pluralizar e multiplicar a narrativa histórica. Falar em histórias (no plural) em lugar de história (no singular) é um gesto importante para evitar o apagamento e/ou a invisibilização de memórias e narrativas outras. Ou, para dizê-lo de modo diferente, reconhece-se aqui a contingência da referência tomada e que é possível trilhar outros caminhos para contar a história do primeiro socorro psicológico. Dito isto, passo a resenhar o texto.  

O livro “The Johns Hopkins guide to psychological first aid” [O guia Johns Hopkins de primeiro socorro psicológico], de George S. Everly Jr. e Jeffrey M. Lating, publicado em 2017, é uma excelente introdução ao debate sobre o primeiro socorro psicológico no contexto do breve século XX. No prefácio da obra, os autores enumeram uma série de acontecimentos relativamente recentes e potencialmente estressores que exigiram ou exigiriam cuidados psicológicos aos sobreviventes, a saber, os ataques de 11 de Setembro em 2001, o furacão Katrina em 2005, os efeitos psicológicos do Ebola no Texas em 2014, os ataques terroristas em São Bernardino e Paris em 2015 e em Bruxelas em 2016. Além de todos esses acontecimentos, podemos ainda inserir, por minha conta e risco, as inúmeras violências urbanas que assolam as grandes metrópoles do globo, as desigualdades socioeconômicas e as hierarquias de raça, gênero e sexualidade que, como estressores psicossociais que atravessam o campo da produção das subjetividades, causam adoecimento e traumas psíquicos, na maioria das vezes não reconhecidos publicamente.

Não há dúvidas de que uma das grandes marcas do século XX é a capacidade técnica de destruir seres humanos de forma massiva. As esferas técnica, científica e econômica da modernidade, relativamente autônomas e em relação de mútua influência e de conflito, produz arranjos de riscos, como, por exemplo, as ameaças químicas e nucleares de destruição em massa, as devastações e deteriorações ambientais assim como as crises e comoções econômico-sociais (Beck, 2011; Giddens, 1995). Em alguma medida, esses exemplos pretendem destacar que os desastres, as catástrofes e os riscos não são a exceção, mas a regra na modernidade, trazendo inúmeros desafios às práticas de cuidado em saúde mental.  Por óbvio que seja, é bom salientar, ao trazer à tona o conjunto de fenômenos que atravessam a modernidade ocidental, não se pretende fazer coro aos dispositivos securitários que arregimentam novas formas de controle social e político, mas tão-somente destacar a grade de inteligibilidade que torna possível falar na emergência de uma prática psicológica chamada “primeiro socorro”.

Desenhada a grade de inteligibilidade pela qual o livro ganha seu sentido, vale dizer que ele está dividido em duas partes: I) Primeiro socorro psicológico – a ciência; e II) Primeiro socorro psicológico – praticando a arte. Conta ainda com um apêndice com técnicas de respiração com vistas à produção de estados de relaxamento e bem-estar. Na primeira parte, composta por três capítulos, os autores buscam definir e situar o primeiro socorro psicológico na história, discutem as consequências psicológicas e fisiológicas do trauma a partir de uma revisão de literatura e apresentam tipologias para classificar e dimensionar os tipos de desastres. Na segunda parte, com seis capítulos, detalham o modelo desenvolvido por eles baseado em suas experiências para a oferta de serviço psicológico de apoio para pessoas em situação de extrema aflição. Finalizam a segunda parte com dicas sobre autocuidado para quem cuida como forma de evitar a chamada “traumatização vicária” que acomete alguns profissionais de saúde que, expostos diariamente a pessoas traumatizadas, podem apresentar sintomatologia idêntica.

George Everly Jr. e Jeffrey Lating definem o primeiro socorro psicológico como a “presença apoiadora e compassiva projetada para estabilizar e mitigar a aflição bem como facilitar o acesso a cuidados continuados” (2017, p. 3-4). Para os autores, T. W. Salmon foi um dos pioneiros na apresentação de evidências para os cuidados de pessoas em situação de crise no contexto da Primeira Guerra Mundial. As experiências históricas de intervenção em crise baseada nos princípios de proximidade, imediaticidade e expectativa demonstraram melhoras significativas para soldados acometidos por traumas. A ideia era que o atendimento aos soldados estivesse à disposição na hora de sua necessidade. Neste modelo, os autores enxergam os rudimentos do que caracterizam como essencial ao primeiro socorro psicológico, a saber, a estabilização, o apoio e os procedimentos de mitigação da aflição. O foco não é na produção de um diagnóstico, mas no desequilíbrio psíquico produzido pela situação traumática com vistas a seu alívio imediato. Além das práticas de intervenções em crise, o primeiro socorro físico de origem médica também contribuiu para a consolidação do campo de primeiro socorro psicológico. Iniciativas importantes como a da Associação de Psiquiatria dos Estados Unidos, em 1954, através da publicação de “Psychological First Aid in Community Disasters” deram indicações de como cuidar de pessoas que passaram por situações estressantes decorrentes de desastres.

A esta altura, considero importante fazer uma digressão. Atribuir a paternidade ou a maternidade de determinadas ideias, concepções ou conceitos é sempre algo controverso. Ainda que George Everly Jr. e Jeffrey Lating enxerguem em T. W. Salmon certo pioneirismo na abordagem da temática, considero importante destacar que a psicanálise não passou incólume à questão, já que ela se constitui como uma importante prática psicoterapêutica pela fala. Em “Caminhos da terapia psicanalítica” de 1919, Freud (2010), crítico do furor curandi, discute a possibilidade da adaptação da psicanálise para corresponder a dinâmicas específicas da sociedade da época. “Clínicas públicas de Freud” de Elizabeth Ann Danto (2019) revela uma psicanálise muito diferente da imagem consagrada no imaginário social em que o paciente aparece deitado no divã no consultório particular de um analista lacônico e distante. O livro de Danto mostra os esforços de inúmeros psicanalistas em oferecer atendimento analítico a uma parcela muito grande da população europeia, em especial àqueles que desenvolveram o que Freud chamou de “neurose de guerra” ou “neurose traumática”. Parece justo supor que a psicanálise participou na construção de reflexões sobre as intervenções em crise ainda que não tenha sido de forma tão sistemática.

Feita esta digressão, voltemo-nos a um tópico importante, a de que o primeiro socorro psicológico (PFA) não é psicoterapia assim como o primeiro socorro físico ainda não é medicina. Na opinião de George Everly Jr. e Jeffrey Lating, qualquer pessoa devidamente treinada pode praticá-lo, pode oferecer as primeiras ajudas psicológicas. A ideia de que o PFA não é psicoterapia é, sem dúvida, outro ponto polêmico da obra, pois parece não haver muito consenso em torno desta questão, sobretudo, porque um dos critérios utilizados pelos autores para diferenciar a psicoterapia da PFA é o tempo mais longo da primeira em contraposição ao tempo mais curto da segunda. Hoje com a diversificação das formas de entrega dos serviços psicológicos graças ao avanço das terapias breves, terapias brevíssimas, terapia de sessão única, plantão psicológico, walk-in clinics etc. (cf. Hoyt et al. 2018), a temporalidade já não pode mais ser utilizada como único critério de corte na diferenciação das formas de oferta do serviço psicológico; tampouco, a ideia de profundidade, já que, em tese, uma única sessão psicoterapêutica pode ser tão ou mais profunda que muitas sessões.

O modelo de primeiro socorro psicológico inventado por George Everly Jr. e Jeffrey Lating tem no acrônimo RAPID a condensação de seu significado: Rapport and reflective listening; Assessment; Prioritization; Intervention; Disposition. Cada um dos capítulos é seguido pela descrição de técnicas, atitudes e habilidades bem como de exemplos interventivos na forma de diálogos. No que diz respeito à letra R, rapport e escuta reflexiva, vale destacar a importância de construir uma conexão com quem está recebendo o primeiro socorro psicológico. O modelo de Carl Rogers da compreensão empática, da aceitação incondicional do outro e da congruência é lembrado como parte da história dos desenvolvimentos de recursos psicológicos fundamentais à constituição de um vínculo autêntico e verdadeiro. A conexão tem sido apontada por vários pesquisadores como essencial para a construção de formas de resiliência interpessoais e comunitárias (Miller, 2012).

O A de avaliação não supõe a aplicação de testes, escalas ou inventários, mas um processo realizado à medida que a pessoa conta o que aconteceu. A partir do que diz e da manifestação física dos sintomas, seu comportamento e suas expressões não-verbais, é possível apreender índices cognitivos, emocionais, comportamentais, espirituais e fisiológicos com o intuito de estabelecer as prioridades, aquilo que é mais urgente. A estratificação dos riscos em baixo, moderado e alto ajuda na construção da intervenção e no encaminhamento. No que diz respeito à letra I de intervenção, George Everly Jr. e Jeffrey Lating sugerem o empoderamento das pessoas em crise através de informações adequadas bem como da reestruturação cognitiva, técnica retirada da psicologia cognitivo-comportamental, na busca pela estabilização e na mitigação da aflição aguda. A reestruturação cognitiva pode desfazer crenças catastróficas e interpretações equivocadas, bem como favorecer a percepção de aspectos positivos. Os autores apresentam muitas outras formas de intervir para o adequado manejo do estresse, tais como o sono, a alimentação, técnicas de relaxamento e exercícios.

Por se tratar de um modelo “historicamente construído, teoricamente orientado, informado por evidências e baseado em comprovações” (Everly Jr. & Lating, 2017, p. 22), qualquer mudança implicaria descaracterização da proposta. No entanto, considerando que a psicologia é um ciência na qual existem diferentes abordagens teóricas, creio ser possível que a intervenção se dê a partir da abordagem teórica de escolha do profissional. A última letra do acrônimo diz respeito à necessidade de encorajar as pessoas a buscar cuidados em saúde após o primeiro socorro psicológico e orientá-las em relação aos serviços disponíveis para que deem continuidade aos cuidados. Finalmente, os autores falam da importância do autocuidado entre profissionais da área de saúde. O trauma vicário, o estresse traumático secundário, o burnout, a fatiga compassiva e um conjunto muito amplo de sintomas como exaustão, irritabilidade, insônia, dificuldades interpessoais, entre outros, estão no rol daquilo a que o profissional de saúde deve estar atento. 

Tanto a necessidade do primeiro socorro psicológico como também da continuidade de cuidados, estão embasadas na revisão de literatura realizada pelos autores na parte I da obra. George Everly Jr. e Jeffrey Lating destacam as evidências científicas que corroboram a hipótese segundo a qual pessoas que receberam o primeiro socorro psicológico tendem a desenvolver menos problemas psicológicos no futuro em comparação àquelas que não receberam. Além disso, inúmeros estudos revisados pelos autores indicam que o estresse pós-traumático, a depressão, a ansiedade, o pânico e o uso de substâncias lícitas ou ilícitas são sintomas comuns entre quem passou por traumas. Isso justifica a necessidade de encorajamento para que cuidados psicológicos contínuos e permanentes sejam realizados. O estímulo ao cuidado após eventos estressores busca afirmar uma dimensão preventiva no campo da saúde mental.

Para finalizar, gostaria de dizer que ainda que George Everly Jr. e Jeffrey Lating aceitem as categorias do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) da Associação de Psiquiatria dos Estados Unidos sem um questionamento explícito, prefiro incluir a sintomatologia decorrente de desastres como expressão de um “sofrimento ético-político” (Sawaia, 1999) para acentuar o quadro de referência histórico referido na abertura desta resenha. A categoria de “sofrimento ético-político” chama a atenção para os contextos relacionais de produção de sofrimento, marcando um horizonte decididamente sociocultural. Tal perspectiva amplia o escopo de possibilidades de atuação do profissional de saúde mental bem como a compreensão do adoecimento psíquico. Ainda que a categorização do sofrimento nos termos do DSM possa ter sua importância no sentido de garantir acesso a tratamentos, ele contribui para a despolitização do sofrimento, pois tende a apagar sua dimensão histórico-contingente moderna. O livro certamente vale a leitura e ensejará muitas outras reflexões que certamente extrapolam as sugeridas pelo resenhista que assina o texto.

Referências

Adichie, C. N. (2009). O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras.

Beck, U. (2011). Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34.

Danto, E. A. (2019). As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social. São Paulo: Perspectiva.

Everly Jr., G., Lating, J. (2017). The Johns Hopkins guide to psychological first aid. Baltimore: Johns Hopkins University Press.

Freud, S. (2010). Caminhos da terapia psicanalítica. In: Obras completas de Sigmund Freud, vol. 14 (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras.

Giddens, A. (1990). As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP.

Hobsbawm, E. (1995). Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras.

Hoyt, M. F. et al. (2018). Single-session therapy by walk-in or appointment: administrative, clinical, and supervisory aspects of one-at-a-time services. London/New York: Routledge.

Miller, J. (2012). Psychosocial capacity building in response to disasters. New York: Columbia University Press.

Sawaia, B. (1999). O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. In: Sawaia, B. (org.). Artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes.

Como citar esse texto

ABNT — OLIVEIRA, M. de J. Primeiro socorro psicológico na era dos extremos. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em:https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/primeiro-socorro-psicologico-na-era-dos-extremos. Acesso em: __/__/___.

APA — Oliveira, M. de J. (2024). Primeiro socorro psicológico na era dos extremos. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/primeiro-socorro-psicologico-na-era-dos-extremos