#Relatos_de_experiência
Resumo:
Relato de experiência de estágio no setor de Atendimento Psicossocial do Departamento dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Secretaria do Governo Municipal de Curitiba. São apresentados dois casos de violação de direitos atendidos pelo setor. Os resultados estão direcionados às análises e encaminhamentos realizados pelo Atendimento Psicossocial, com discussões que atravessam temas como capacitismo, gênero, dinâmica familiar, estrutura social e saúde mental. Ressalta-se a importância do modelo social de deficiência para uma prática ética voltada aos direitos humanos. Conclui-se que esta experiência de estágio proporcionou uma visão integral da pessoa com deficiência, considerando a importância de sua subjetividade e contexto social, além de contribuir na formação de uma psicologia crítica, que entende as relações de poder, discriminação e violação de direitos que ocorrem, e se dirige a uma transformação emancipatória para as pessoas com deficiência.
Palavras-chave: psicologia; pessoas com deficiência; políticas públicas.
BEREAVEMENT IN THE PANDEMIC: EXPERIENCE REPORT OF A UNIVERSITY EXTENSION PROJECT
Abstract: Report of internship experience in the Psychosocial Care sector of the Department for the Rights of People with Disabilities of the Secretariat of the Municipal Government of Curitiba. Two cases of violation of rights attended by the sector are presented. The results are directed to the analyzes and referrals carried out by the Psychosocial Care, with discussions that cross themes such as ableism, gender, family dynamics, social structure and mental health. The importance of the social model of disability for an ethical practice focused on human rights is highlighted. It is concluded that this internship experience provided an integral view of people with disabilities, considering the importance of their subjectivity and social context, in addition to contributing to the formation of a critical psychology, which understands the power relations, discrimination and violation of rights that occur, and is aimed at an emancipatory transformation for people with disabilities.
Keywords: psychology; disabled people; public policy.
PSICOLOGÍA CRÍTICA EN EL ÁMBITO DE DERECHOS DE LAS PERSONAS CON DISCAPACIDAD
Resumen: Informe de experiencia de pasantía en el sector de Servicio Psicosocial del Departamento de Derechos de las Personas con Discapacidad de la Secretaría del Gobierno Municipal de Curitiba. Se presentan dos casos de vulneración de derechos atendidos por el sector. Los resultados están dirigidos a los análisis y derivaciones que realiza el Servicio Psicosocial, con discusiones que cruzan temas como capacitismo, género, dinámica familiar, estructura social y salud mental. Se destaca la importancia del modelo social de discapacidad para una práctica ética centrada en los derechos humanos. Se concluye que esta experiencia de pasantía brindó una visión integral de las personas con discapacidad, considerando la importancia de su subjetividad y contexto social, además de contribuir a la formación de una psicología crítica, que comprenda las relaciones de poder, discriminación y vulneración de derechos que ocurren, y tiene como objetivo una transformación emancipadora para las personas con discapacidad.
Palabras clave: psicología; personas con discapacidad; políticas públicas.
O s dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010) estimam que quase 24% dos brasileiros possuem algum tipo de deficiência, sendo que aproximadamente 7% declaram graves impedimentos de natureza física, sensorial ou intelectual. Para além de quantitativos e públicos específicos, entende-se a deficiência como algo inerente à condição humana, uma vez que esta se apresenta como uma experiência relacionada ao ciclo de vida humano, no qual envelhecer significa experimentar um corpo com deficiência (Diniz, 2007).
A definição atual de deficiência, trazida pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto n. 6.949, 25 de agosto de 2009), e reafirmada pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei Federal nº 13.146/2015), contempla em si o conceito de interação com as barreiras sociais, implicando-as na obstrução da participação plena e efetiva das pessoas com deficiência em igualdade de condições com as demais pessoas. O entendimento da deficiência como responsabilidade social, evidencia o impacto das questões históricas e sociais na qualidade de vida das pessoas com deficiência.
Pautando-se em pressupostos teóricos da segunda geração do modelo social, a Convenção inova ao romper com o modelo biomédico e ao permitir uma leitura da deficiência articulada aos marcadores sociais de raça, gênero, geração e classe, cuja intersecção com a deficiência produz e potencializa processos de exclusão e discriminação (Gesser, Nuernberg, & Toneli 2012; Gesser, Block & Mello, 2020).
A capacidade legal das pessoas com deficiência é outro importante ponto que se destaca nas contribuições da Convenção, apresentando-se como um direito imbricado ao direito de cuidado. Este reconhecimento da autonomia apoiada direciona o olhar às relações de interdependências como garantia de direitos da pessoa com deficiência com comprometimentos funcionais mais significativos (Gesser, 2019).
A visão de normalidade e de padrão funcional e corporal na qual a sociedade é estruturada, fundamento do capacitismo, considera como menos capazes as pessoas que desviam da norma esperada, podendo ser tratadas, intencionalmente ou não, com desigualdade no acesso a direitos. O capacitismo se configura como a discriminação contra as pessoas com deficiência, estrutural e naturalizada em nossa sociedade, e se expressa em movimentos, evidentes ou sutis, de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que prejudicam, impedem e anulam o exercício dos direitos e das liberdades de pessoas com deficiência.
A psicologia, no campo dos direitos humanos das pessoas com deficiência, pode evidenciar como as violações afetam as subjetividades, denunciando de forma qualificada estas situações e promovendo favoráveis transformações das situações que acarretam violação dos direitos fundamentais (Gonçalves, 2010).
Em Curitiba, o executivo municipal conta com um setor de Atendimento Psicossocial, inserido na estrutura do órgão de articulação transversal das políticas públicas para pessoas com deficiência. Este artigo trata do relato de experiência sobre a prática do estágio em psicologia no setor de Atendimento Psicossocial do Departamento dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Secretaria do Governo Municipal de Curitiba, apresentando a experiência de atendimento às pessoas com deficiência em situação de risco, no contexto da garantia de direitos, fomentando a discussão sobre a necessidade de uma psicologia anti capacitista.
O setor de Atendimento Psicossocial possui como público alvo as pessoas com deficiência que se encontram em situação de risco para violação de direitos, compreendendo-as no contexto da família e da comunidade, considerando as individualidades e subjetividades, e os marcadores sociais envolvidos. Como exemplo, atende ocorrências de negligência, cárcere privado, violência física, psicológica e sexual. Além disso, acompanha e orienta as famílias e instituições que prestam atendimento a esta população. Os casos chegam ao setor mediante denúncias realizadas pela comunidade, por equipamentos municipais de educação, saúde e assistência social, por instituições de atendimento ao público com deficiência, pelo Ministério Público e pelo poder judiciário. A equipe é formada por duas psicólogas e três estagiários de psicologia que atendem todo o território do município de Curitiba.
O atendimento aos casos inicia com o acolhimento das demandas e denúncias recebidas, onde são coletadas informações com as quais será realizada uma primeira análise, para direcionamento de coletas de informações mais específicas com os equipamentos e pessoas envolvidas, de forma a evidenciar as contradições da situação a envolver o caso. Procura-se ouvir as pessoas com deficiência sempre que possível, e levantar o histórico dos atendimentos realizados à sua rede familiar pelos serviços municipais. Inicia-se, então, um trabalho de articulação intersetorial com outras políticas públicas e equipamentos regionais, incluindo a solicitação de visita domiciliar ou institucional pelas equipes de saúde e assistência social do território de moradia da pessoa, e a realização de reuniões para discussão do caso e construção conjunta dos encaminhamentos. Em algumas situações, se faz necessário a judicialização do caso a fim de garantir a proteção e acesso a direitos. Após efetivação das intervenções, se estabelece um acompanhamento do caso pelas equipes do território, com assessoria do setor de Atendimento Psicossocial, sempre que necessário.
Apresentaremos neste relato de experiência dois casos atendidos no setor, expondo suas demandas, as considerações relativas ao estudo técnico dos casos e as articulações realizadas. Utilizaremos nomes fictícios para as pessoas envolvidas nos atendimentos, de forma a preservar suas identidades e garantir o sigilo das informações, conforme previsto no código de ética do psicólogo.
Jorge, 25 anos, é uma pessoa com deficiência física, com Atrofia Muscular Espinhal (AME), e seu caso chegou ao setor de Atendimento Psicossocial por meio de sua mãe, Amélia, com a demanda de que não sabia mais o que fazer com seu filho, uma vez que o jovem apresentava um quadro depressivo, tinha abandonado os tratamentos médicos e fisioterápicos, e se recusava a sair do ambiente domiciliar. Amélia relatou, ainda, que tinha conflitos com o pai de Jorge, Pedro. Ela e o ex-marido passaram por um processo de divórcio litigioso na Vara da Família e a partir de então ficou definido que Pedro ajudaria três vezes por semana nos cuidados do filho. Porém, segundo Amélia, o pai agredia verbalmente tanto ela quanto Jorge, sempre reclamando da deficiência do rapaz e de sua suposta incapacidade.
Dando início aos encaminhamentos, buscou-se um contato com Jorge, para compreender sua perspectiva frente ao relato da mãe, porém sem sucesso, pois Amélia dizia que o filho se negava a falar com os profissionais. Também foi conversado com o pai de Jorge e realizada uma tentativa de responsabilização do mesmo, porém Pedro mostrou-se resistente. Durante alguns meses, o contato com a genitora se manteve, e ela apresentava sempre o mesmo discurso, de que Jorge estava muito mal, e de que não aguentava mais esta situação e a forma na qual Pedro os tratava.
Foi realizado contato com as equipes municipais de saúde e assistência social para encaminhamento do caso. As equipes já conheciam e acompanhavam a família há algum tempo, e relataram que Amélia não aderiu aos encaminhamentos subsequentes ao divórcio litigioso, incluindo a solicitação de medida protetiva. Também foi contatada a Casa da Mulher Brasileira, onde foi averiguado que Amélia já possuía um processo contra Pedro por violência física, tendo sido determinado o afastamento dele da residência e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, a obrigação de que o pai ajudasse nos cuidados com o filho, uma vez que Amélia não conseguiria manter esses cuidados sozinha.
Devido à complexidade do caso e a dificuldade da família em aderir os encaminhamentos propostos, o caso foi encaminhado para a Rede de Atendimento Integrado às Pessoas com Deficiência em Situação de Risco para Violação de Direitos, que compõe a estrutura do setor e é utilizada quando os casos necessitam de uma discussão intersetorial mais estratégica, articulando com as demais políticas públicas de saúde, assistência social, educação, com a Promotoria de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério Público do Paraná e com o Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Em articulação com a Promotoria, foram estabelecidos encaminhamentos conjuntos sobre o caso, incluindo uma visita na casa de Amélia e Jorge. Diferente das outras vezes, Amélia aceitou a visita do setor de Atendimento Psicossocial e as profissionais conseguiram falar com Jorge, que até então não havia se manifestado diretamente para as equipes. A partir desta visita, Jorge criou vínculo com a psicóloga do setor, relatando por mensagens de texto as violências sofridas em sua residência, tanto da mãe quanto do pai, evidenciando um sistema familiar adoecido. A psicóloga conseguiu sensibilizar Jorge para que este fosse até a Promotoria relatar os conflitos familiares que estavam ocorrendo, a fim de que seus direitos fossem garantidos. Em conjunto, a mãe foi orientada a buscar atendimento psicológico, porém esta não aceitou o encaminhamento. Atualmente, o caso está em acompanhamento pela Promotoria dos Direitos da Pessoa com Deficiência, tendo sido ambos os genitores responsabilizados pelos cuidados com Jorge.
Thiago, 3 anos, tem diagnóstico de transtorno do espectro autista, e seu caso chegou ao setor de Atendimento Psicossocial pelo Ministério Público, que solicitou participação em uma audiência, na qual o setor pôde conhecer as demandas e coletar algumas informações, para então discutir o caso em equipe e realizar os encaminhamentos necessários.
A mãe de Thiago, Célia, passou por inúmeras situações de vulnerabilidade e violência doméstica, que também eram direcionadas à criança. Em razão deste contexto familiar que os colocavam em risco, Célia e Thiago foram acolhidos em uma instituição que atende mães e seus filhos. Depois de alguns meses vivendo na instituição, Célia começou a se queixar sobre o comportamento de alguns funcionários, que estariam negando cuidados a Thiago e o discriminando em função de sua deficiência. Célia também informou ao Ministério Público que os funcionários estavam insistindo para que ela não trabalhasse para passar mais tempo cuidando de seu filho.
O setor de Atendimento Psicossocial passou a acompanhar o caso, articulando a prioridade nos atendimentos e avaliações de Thiago no ambulatório municipal especializado em transtorno do espectro autista. E foi proposta uma reunião de capacitação aos funcionários da instituição de acolhimento, com a facilitação do referido ambulatório, para instruí-los, sanar dúvidas e capacitá-los a melhor realizar os cuidados e manejos com crianças autistas.
Após os encaminhamentos, Thiago passou por consulta com médica pediatra, psicóloga e fonoaudióloga, onde foi possível avaliar seu nível de desenvolvimento, brincadeira, interação e comportamentos. Foram, então, elaboradas estratégias específicas para serem discutidas na reunião de capacitação, realizada na sequência, e mantido contato com os envolvidos a fim de reforçar a necessidade de participação de todos os profissionais que prestam atendimento a Thiago.
No dia da reunião, realizada de forma online em função da pandemia de Covid-19, estavam presentes as psicólogas e estagiárias de psicologia do setor, a equipe do ambulatório e diversos funcionários da instituição de acolhimento. O coordenador do ambulatório explicou sobre o serviço de treinamento para pais de crianças autistas, no qual Célia poderia ingressar, juntamente a um funcionário da instituição, e fez orientações baseadas nas percepções e avaliações da equipe técnica que havia atendido Thiago, indicando aspectos de seu comportamento, fala e brincadeiras. Foi apontada a importância de manter uma rotina para que a criança consiga se organizar, e sugerido um treino de comunicação que poderia ser realizado pelos funcionários da instituição. Foram feitas orientações sobre como lidar com o choro, com o espaço de Thiago e sobre as brincadeiras possíveis e indicadas para seu desenvolvimento.
Na sequência, os funcionários da instituição falaram sobre suas impressões e dificuldades no manejo com Thiago, explicando sobre sua rotina, crises de choro, relatando questões relacionadas à sua mãe e fazendo alguns questionamentos. Os funcionários do ambulatório e do setor de Atendimento Psicossocial realizaram orientações e reforçaram a importância de garantir os direitos de Thiago e Célia, sem fazer distinções ou restrições em função do quadro de deficiência.
Por fim, foi de comum acordo traçar um plano terapêutico, começando pelas orientações com a mãe, solicitando que a instituição auxiliasse na assiduidade nos atendimentos e consultas de Thiago, e garantindo que o Atendimento Psicossocial seguiria acompanhando o caso, podendo mediar e auxiliar no que fosse necessário. O setor enviou relatório ao Ministério Público, detalhando todos os contatos e ações realizadas para a proteção e garantia dos direitos de Thiago e sua mãe.
O caso de Jorge evidencia a forma como as barreiras sociais interferem na participação plena das pessoas com deficiência. Conforme afirma Diniz (2007), essas barreiras criam relações de desigualdade, não considerando a diversidade de corpos, e impedindo a pessoa de praticar sua cidadania e de exercer sua individualidade. Neste caso, temos como exemplo a barreira atitudinal, que evidencia uma visão distorcida dos pais perante a deficiência do filho, e impacta, consequentemente, na forma como Jorge compreende a si mesmo, gerando um fator de risco para sua saúde mental. Essa percepção, construída através de um imaginário social que perpetua pensamentos e ações capacitistas, entende a deficiência como algo apenas biológico, incapacitante, e que deve ser corrigido, desconsiderando a interação da deficiência com as barreiras sociais (Ivanovich & Gesser, 2020). Esses fatores trouxeram impactos na forma como Jorge se relaciona com sua identidade e autoestima, a ponto de abandonar os tratamentos, acreditando que não poderiam o ajudar.
Devido a esta percepção construída historicamente sobre sua deficiência, Jorge deixou de ter autonomia em sua vida diária. Percebe-se que o jovem não possui um papel ativo para realizar suas escolhas, e é criticado pelos pais quando efetua tentativas neste sentido. Jorge não consegue realizar as atividades pelas quais se interessa, pois Amélia é a responsável por decidir sobre sua rotina. Cabe destacar que partimos de uma perspectiva da ética do cuidado, onde a autonomia não significa necessariamente independência, mas sim a possibilidade de exercer escolhas dentro do seu contexto de vida, na afirmação de sua subjetividade nas relações de interdependência que estruturam a vida social.
Ainda que Jorge tenha a possibilidade de desenvolvimento de sua autonomia, ele precisa ser atendido em suas necessidades de cuidado. Uma vez que, como apontam Gaudenzi e Ortega (2016), a dependência faz parte da vida em comunidade, sendo o cuidado uma reivindicação de justiça social e um direito humano. A autonomia é, portanto, uma construção coletiva, sustentada por uma rede de apoio e criação de laços de interdependência (Gonçalves, Caliman & César, 2021). O caso de Jorge evidencia a importância do psicólogo na atuação da garantia dos direitos da pessoa com deficiência, de forma a considerar sua subjetividade e saúde mental, compreendendo-a em seu contexto familiar e social, estimulando sua autonomia perante escolhas de vida e garantindo o direito ao cuidado.
A dinâmica familiar em pauta aponta para a necessidade do suporte em relação à saúde mental dos cuidadores de pessoas com alto grau de dependência. Estes frequentemente ficam desassistidos, reproduzindo uma percepção do modelo de deficiência capacitista, gerando violência ou negligência por não conseguirem manejar os cuidados e as demandas da pessoa com deficiência. Percebe-se, ao longo dos atendimentos, como Amélia estava exausta física e psicologicamente, uma vez que não tinha apoio para cuidar do filho.
A questão de gênero se evidencia na sobrecarga direcionada às mulheres que exercem papel de cuidadoras assumindo todas as responsabilidades do cuidado, sem dividir de forma igualitária essa função com seus companheiros. Missagia (2020) destaca como o papel do cuidado muitas vezes é imposto à mulher, exigindo uma submissão como um valor apreciado na sociedade. Esse panorama evidencia as relações desiguais de poder que se estabelecem no meio social e na própria família, em função de uma estrutura social sexista e patriarcal.
Além disso, Amélia e Pedro se encontravam em um ciclo de violência psicológica, com a presença de agressões verbais e desqualificação do ex-companheiro e companheira, impactando, portanto, na forma que ambos cuidavam do filho, estabelecendo uma relação de violência entre todos os membros da família. Mello (2014) retrata como a violência doméstica e intrafamiliar pode repercutir de forma negativa no cuidado da pessoa com deficiência, quando há a presença de um contexto de violência que faz parte da dinâmica familiar.
No caso de Thiago, o acesso ao cuidado também é prejudicado pela necessidade de proteção da situação de violência familiar. Percebe-se que a instituição de acolhimento, ainda que tenha vasta prática no atendimento a casos de vulnerabilidade social, por se tratar de uma instituição que acolhe mulheres com filhos em situação de violação de direitos, não demonstra preparo para atender uma pessoa com deficiência. Isso indica uma falta de percepção e entendimento da deficiência enquanto um marcador social, fator de exclusão e de vulnerabilidade. Da mesma forma que as representações de gênero, raça, classe e sexualidade impactam diretamente na constituição do sujeito e em seus processos de subjetivação e materialização, assim ocorre com a deficiência. No atravessamento entre estes marcadores, articulam-se múltiplas desigualdades, espaços de marginalização e negação da diversidade enquanto forma de vida histórica e social (Crenshaw, 2002, como citado em Gomes & Lopes, 2017, pp. 2-3).
A ideia estrutural de que a deficiência é algo negativo e que deve, a todo custo, ser consertada, curada, eliminada ou excluída, atrelada ao escasso debate sobre a deficiência nos espaços de convívio social, favoreceram o surgimento de práticas capacitistas dentro da instituição de acolhimento (Ivanovich & Gesser, 2020). Os funcionários da instituição na qual Thiago estava acolhido com sua mãe, discriminaram e negligenciaram suas necessidades, usando como justificativa a deficiência da criança.
Estas atitudes capacitistas desvalidam, desvalorizam e diferenciam as pessoas com deficiência, com base em um ideal de capacidades corporais, emocionais e cognitivas. Segundo Ivanovich e Gesser (2020, p. 14), “o capacitismo leva as pessoas com deficiência a serem tratadas como incapazes de trabalhar, aprender, cuidar, amar, sentir, desejar e ser desejadas. Como tal, o capacitismo priva as pessoas com deficiência de vários direitos”.
A participação do Ministério Público do Paraná nos casos atendidos pelo Atendimento Psicossocial se dá tanto na rede de articulações quanto na convocação do setor ao caso – como no caso da criança Thiago. A presença deste órgão ministerial de defesa dos interesses da sociedade nas discussões e articulações dos casos possibilita a judicialização de encaminhamentos para os quais as políticas públicas não se encontram formatadas ou efetivadas para atender. Além disso, esgotadas as tentativas de sensibilização, orientação e responsabilização em situações de negligência e omissão de cuidados pelas equipes municipais, a ação das promotorias junto aos familiares e cuidadores – como no caso dos pais de Jorge – se faz decisiva para a estratégia de manutenção e fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
A articulação com os diversos órgãos públicos, em especial os da esfera municipal na atuação em pauta, e com outros atores societais, se faz imprescindível para a perspectiva transversal da política de direitos da pessoa com deficiência. A transversalidade se faz a principal estratégia para o atendimento a problemas sociais complexos, tendo como finalidade inserir as pautas sociais em todas as ações governamentais, das diversas áreas setoriais, de forma a reduzir as desigualdades (Diniz, Bernardino & Diniz, 2013). Esta abordagem multidimensional e integrada é a base do trabalho do Atendimento Psicossocial que, ao mesmo tempo que atua nos casos específicos de violação de direito, busca qualificar os serviços e orientar as equipes municipais, além de promover uma prática de diálogo e construção coletiva, de forma a permitir uma visão integral e complexa sobre as pessoas com deficiência.
A rotina de demandas dirigidas aos órgãos setoriais, neste movimento de articulação transversal, passa por desafios devido às distintas prioridades e estruturas destes órgãos. Diniz, Bernardino e Diniz (2013) apontam a assimetria de interesses como principal desafio para o desencadeamento de uma política transversal, uma vez que as políticas setoriais possuem responsabilidades específicas e a gestão da transversalidade se constitui como uma incumbência adicional. O trabalho do Atendimento Psicossocial, neste contexto, passa por uma esfera inicial de sensibilização e promoção de um envolvimento compartilhado entre os órgãos, para que estes reconheçam sua responsabilidade no processo de construção coletiva da política de direitos da pessoa com deficiência.
No contexto de atendimento psicossocial às pessoas com deficiência em situação de risco para violação de direitos, evidencia-se a importância do compromisso político inerente à prática profissional da psicologia. As pessoas com deficiência vivenciam processos de opressão e exclusão naturalizados em um modelo biomédico, por meio do qual recai sobre a pessoa com deficiência a responsabilidade de superação de suas singularidades biológicas e nega a implicação do social na constituição da condição de deficiência. Esta leitura dos fatos sociais como naturais caracteriza o lugar de alienação em relação a quem se é como pessoa e, consequentemente, quem se é socialmente (Lane, 2004). As possibilidades de autodefensoria e autonomia na afirmação de direitos pelas pessoas com deficiência e suas famílias se tornam mais limitadas neste cenário de alienação. A atuação profissional numa perspectiva histórica, dirigida para a desnaturalização das situações de opressão, afirma as demandas como direitos, quebrando com a recorrente visão caritativa sobre as pessoas com deficiência e favorecendo ações que produzam autonomia.
Como afirma Freitas (2015), as políticas públicas envolvem uma teia complexa de relações, com mediações direcionadas ao atendimento das necessidades da população, e cabendo à psicologia, inserida neste contexto, a reflexão sobre seu compromisso com a população envolvida e o fortalecimento de uma prática ligada à defesa de seus direitos. Dentro da perspectiva da inclusão das pessoas com deficiência, na dialética do combate à exclusão, é necessário que a prática psicológica promova níveis de proteção de forma a garantir o exercício da cidadania e a autonomia destas pessoas, rompendo com a subordinação que acompanha os processos discriminatórios, e afirmando as políticas públicas enquanto direito (Wanderley, 1999).
No atendimento aos casos relatados neste artigo, as articulações e encaminhamentos se direcionam à defesa dos direitos humanos das pessoas atendidas. Este posicionamento fala do compromisso com a construção de uma sociedade democrática, que respeita os direitos sociais (Gonçalves, 2010), além de marcar um posicionamento crítico, alinhado com os princípios fundamentais do código de ética profissional da psicologia.
Por fim, ressalta-se a importância desta experiência de estágio na formação profissional das estudantes de psicologia, pois a partir dela foi possível construir um posicionamento crítico, compreender a deficiência como parte da diversidade humana, e a pessoa com deficiência como um sujeito de direitos, entendendo a relevância do comprometimento ético e da prática engajada na transformação social e na luta anticapacitista, vinculando-se às ações emancipatórias e voltadas às necessidades do público atendido (Bock, 1999).
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