#Relatos_de_Experiências
Resumo: Este relato aborda a prática da psicologia, suas possibilidades e seus desafios a partir da experiência enquanto psicóloga residente em um hospital geral sem leitos psiquiátricos. Parte-se de uma retomada histórica do surgimento do hospital geral e do nascimento do alienismo e do manicômio, apresentam-se os movimentos mundiais de crítica, reforma e ruptura com as instituições asilares e o processo histórico da reforma psiquiátrica brasileira. Por fim, apresenta-se um relato estratificado entre o atendimento aos pacientes, o trabalho com as equipes no hospital geral e a articulação com os demais serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Enfatiza-se a necessidade de fortalecimento dos serviços de atenção à saúde mental e a importância da transformação da forma com a qual a sociedade como um todo se relaciona com a loucura.
Palavras-chave: Hospital Geral, Psicologia, Reforma Psiquiátrica.
PSYCHOLOGY, MENTAL HEALTH POLICY AND THE GENERAL HOSPITAL: A EXPERIENCE REPORT
Abstract: This report addresses the practice of psychology, its possibilities and challenges based on an experience as a resident psychologist in a general hospital without psychiatric beds. Starting from a historical resumption of the emergence of the general hospital and the birth of alienism and the asylum, the global movements of criticism, reform and rupture with asylum institutions and the historical process of Brazilian psychiatric reform are presented. Finally, a stratified report is presented between patient care, work with teams at the general hospital and coordination with other services of the Psychosocial Care Network (RAPS). The need to strengthen mental health care services and the importance of transforming the way in which society as a whole relates to madness is emphasized.
Keywords: General Hospital, Psychology, Psychiatric Reform.
PSICOLOGÍA, POLÍTICA DE SALUD MENTAL Y HOSPITAL GENERAL: UN RELATO DE EXPERIENCIA
Resumen: Este informe aborda la práctica de la psicología, sus posibilidades y desafíos a partir de una experiencia como psicólogo residente en un hospital general sin camas psiquiátricas. A partir de una reanudación histórica del surgimiento del hospital general y del nacimiento del alienismo y del asilo, se presentan los movimientos globales de crítica, reforma y ruptura con las instituciones del asilo y el proceso histórico de reforma psiquiátrica brasileña. Finalmente, se presenta un informe estratificado entre atención al paciente, trabajo con equipos del hospital general y coordinación con otros servicios de la Red de Atención Psicosocial (RAPS). Se enfatiza la necesidad de fortalecer los servicios de atención de salud mental y la importancia de transformar la forma en que la sociedad en su conjunto se relaciona con la locura.
Palabras-clave: Hospital General, Psicología, Reforma Psiquiátrica.
De espaço de segregação da diferença a local último da cura do corpo, o hospital geral passou por diversas transformações ao longo da história no que se refere a sua forma e aos seus objetivos enquanto instituição. O hospital que hoje conhecemos é o resultado do movimento de especificação de um espaço que já serviu como instrumento de acolhimento e, também, de segregação das mais diversas diferenças. O recurso à memória e à história é fundamental para a compreensão da configuração atual das instituições em que o trabalho da psicologia é convocado e se faz necessário. Além disso, o olhar ao passado possibilita a formulação de um horizonte em que novas formas e novos objetivos na atenção à saúde podem surgir.
A origem do hospital geral é intimamente ligada à necessidade de segregação e enclausuramento daqueles que, por motivos diversos, não conseguiam se adequar às exigências da normalidade de sua época e de sua sociedade. O hospital geral surgiu, portanto, como local de isolamento da diferença – e aqui, podemos incluir a loucura. Ao longo do tempo, ocorreu a transformação do hospital geral em um local de cura das afecções orgânicas e a consequente derivação do hospital psiquiátrico para o tratamento, se possível, da loucura, ou então seu isolamento (Teixeira, 2019). No entanto, os hospitais psiquiátricos passaram a se configurar como locais de violação de direitos humanos e, em contrapartida, surgiram diversos movimentos de crítica, reforma e ruptura com as instituições asilares e o saber psiquiátrico (Amarante, 1998).
A reforma psiquiátrica brasileira, inspirada no trabalho de Franco Basaglia e nas mudanças na legislação italiana, visa a transformação das formas de cuidado da saúde mental no Brasil, através do deslocamento do cuidado da instituição asilar ao serviços no território, com a criação de diversos dispositivos e tecnologias de assistência à saúde mental (Amarante, 1998). A legislação brasileira também demarca o papel do hospital geral na política de saúde mental, determinando a oferta de cuidado em enfermarias especializadas em saúde mental e serviços hospitalares de referência para atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas (Portaria nº 3.088, 2011). Assim, vemos um retorno, ainda que sutil, do lugar da loucura no hospital geral. Além do lugar especificamente reservado para essas demandas, é comum que pacientes em sofrimento decorrente de transtornos mentais internem nos hospitais gerais para tratar de afecções orgânicas.
Este relato de experiência trata da atuação de uma psicóloga residente em um hospital geral integrante do Sistema Único de Saúde (SUS), e foi mobilizado por questões que acompanharam o cotidiano do trabalho: Como são acolhidos pacientes em sofrimento psíquico em um ambiente predominantemente médico, voltado às questões do corpo adoecido, e não às questões do sofrimento psíquico? Quais são as possibilidades e desafios do trabalho da psicologia neste campo? E como podemos articular uma rede de atenção à saúde mental realmente efetiva? Antes de tentar responder essas perguntas, propomos um retorno às origens do hospital geral, do manicômio e das políticas de cuidado à saúde mental.
Segundo Foucault (2002), podemos localizar a origem do hospital geral no fim da Idade Média, momento de colapso do modo de produção feudalista que gerou grandes mudanças na organização das formas de trabalho e de vida. Durante os séculos XV e XVI, com o fluxo migratório dos camponeses rumo às cidades europeias, multiplicou-se o número de miseráveis nas ruas, devido à escassez de empregos e à dificuldade dos recém chegados em obterem qualquer sustento. As classes dirigentes, incomodadas com o acúmulo de pessoas nas ruas, articularam a reorganização dos serviços de caridade, com o objetivo de recolher às instituições todos aqueles que estavam perdidos nas ruas. Foucault (2002) nos apresenta a transformação dos leprosários, vazios após o arrefecimento dos surtos de hanseníase, em hospitais gerais. As grandes estruturas dos leprosários, espalhadas por toda Europa e desenvolvidas com o objetivo de isolar os acometidos pela hanseníase, encontravam-se vazias, no aguardo do próximo mal a ser contido entre suas paredes. O hospital geral é oficializado com a fundação do Hospital Geral de Paris, em 1656, momento que Foucault (2002) denomina como “a grande internação”: a captura dos pobres, moribundos, ociosos, inúteis, devassos, prostitutas – entre eles, os loucos. Ou seja, isolamento de todos aqueles que estavam à deriva nas vilas e povoados, todos aqueles que não encontravam margem para ancoragem.
Havia a concepção de que o louco era o portador de uma verdade, a verdade invisível ou indiferente aos olhos dos sãos. Verdade dolorosa, incômoda, e que por isso não encontrava espaço nas ruas. Aqui evoca-se a figura da nau dos insensatos, que ilustra a repulsa associada à diferença: os loucos eram escorraçados das cidades, lançados ao mar em um navio sem rumo além daquele ditado pelas correntes, ocasionalmente atracando em cidades, recebendo mantimentos e mais loucos, para então seguir sua viagem rumo ao desconhecido. Podemos dizer que o lugar socialmente construído para a loucura é, primeiramente, um não-lugar (Foucault, 2002).
Foi com a apropriação do hospital geral pelo saber médico, em meados do século XVIII, que a função desta instituição deixou de ser a caridade e o isolamento e passou a ser a cura. O hospital geral tornou-se uma instituição médica a partir do deslocamento da prática médica e da disciplinarização do hospital. Isso quer dizer que, com o deslocamento da prática médica, a função dos médicos deixou de ser o acompanhamento da doença para a intervenção no doente, e com a disciplinarização, o espaço físico do hospital, assim como a disposição e organização dos doentes, passou a ser regida com o objetivo de também intervir no doente (Foucault, 1979). Mas como intervir na doença da loucura?
Foi no contexto dos ideais iluministas que surgiu a ideia de que uma internação exclusiva aos loucos poderia ser benéfica – além disso, seria capaz de curá-los. Se o hospital geral já não era mais o espaço adequado para a intervenção na loucura, e a ideia da mera segregação já estava um pouco ultrapassada, surgiu então um novo ramo da medicina, que pode ser considerado como sua primeira especialidade: o alienismo. Inaugurado por Philippe Pinel, o alienismo tinha como meta tratar e recuperar os alienados, com o objetivo de incorporá-los na sociedade burguesa, ou, caso a cura não fosse possível, mantê-los isolados e protegidos dos perigos que poderiam causar a si ou aos outros (Teixeira, 2019).
Philippe Pinel iniciou seus trabalhos em Bicêtre, uma unidade do Hospital Geral de Paris que continha sete pavilhões e recebia somente homens. Era um local não-medicalizado, onde pessoas leigas administravam o cotidiano da instituição. Um dos pavilhões era inteiramente dedicado aos loucos, sua maioria considerados incuráveis, e que passavam dias e noites acorrentados em suas celas. Pinel foi nomeado médico-chefe de Bicêtre, onde procedeu a operar uma mudança significativa na função e na estruturação do trabalho. Pinel instituiu o tratamento moral e certos componentes humanizadores do espaço hospitalar. Há o famoso gesto de Pinel, que libertou os loucos de suas correntes e passou a permitir seu trânsito entre os corredores e áreas comuns do hospital. Em seguida, Pinel foi nomeado chefe da Salpêtrière, uma versão feminina de Bicêtre onde repetiu o mesmo experimento. Bicêtre e Salpêtrière são experiências emblemáticas da fundação do alienismo e o gesto de Pinel de rompimento dos grilhões é considerado pela psiquiatria como seu mito de fundação (Teixeira, 2019).
Com a criação deste novo dispositivo, o manicômio, local de internação destinado somente aos insanos, surge a clínica da psiquiatria. A loucura, portanto, é tomada como objeto de intervenção médica. Pinel propunha o papel terapêutico do manicômio a partir da ordem racional dos espaços e das atividades, que poderiam curar os loucos. Porém, além da organização e da valorização da atividade, o uso de punição e de intimidação era aceitável (Teixeira, 2019).
Os movimentos de crítica ao saber psiquiátrico e de reforma das instituições asilares partem de uma crise teórica e prática da psiquiatria devido à mudança de seu objeto: do tratamento da doença mental à promoção da saúde mental. Amarante (1998) distingue dois grupos desses movimentos: o primeiro, relacionado à crítica à estrutura asilar, e o segundo, que busca a extensão da psiquiatria ao espaço público. Podemos elencar as experiências das Comunidades Terapêuticas, fundadas na Inglaterra e nos Estados Unidos, da Psicoterapia Institucional, originada na França, e as Terapias de Família como constituintes deste primeiro grupo. O que agrupa estes movimentos é a aposta no potencial terapêutico das instituições e seus ideais buscam resgatar o caráter positivo de tais lugares. Já o segundo grupo engloba experiências que buscam prevenir e promover a saúde mental, como a Psiquiatria de Setor, originada na França, e a Psiquiatria Comunitária ou Preventiva, dos Estados Unidos. Um fator em comum entre todos os movimentos citados é seu caráter reformista, que ora conserva a estrutura asilar, buscando humanizá-la, ora conserva o saber psiquiátrico, levando-o para fora da instituição.
Além dos dois grupos citados anteriormente, Amarante (1998) apresenta a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática Italiana, movimentos considerados de ruptura com a psiquiatria alienista e com a instituição asilar. Esses movimentos buscam a desconstrução do aparato psiquiátrico, que é composto pelo conjunto de relações entre as instituições, práticas e saberes que delimitam objetos e conceitos que reduzem a complexidade dos fenômenos da loucura. Enquanto a Antipsiquiatria consiste em um movimento predominantemente teórico, a Psiquiatria Democrática Italiana diferencia-se por compreender um movimento de crítica atrelado a mudanças práticas em determinadas instituições, à composição de movimentos sociais e até mesmo a uma mudança na legislação italiana.
Franco Basaglia foi um psiquiatra italiano que realizou um trabalho, antes de tudo, político, ao ressaltar a urgência da revisão das relações que sustentavam a prática médica, propondo uma análise histórico-crítica de como a sociedade estava e está, e como ela se relaciona com o sofrimento e com a diferença. A primeira experiência de Basaglia, ocorrida em Gorizia na década de 1960, consistiu em uma tentativa de humanização do hospital psiquiátrico, partindo do modelo de Comunidade Terapêutica como estratégia para a instauração de uma crise interior à instituição, assim possibilitando sua transformação em algo novo. Basaglia, porém, teceu diversas críticas ao modelo de Comunidade Terapêutica, como o caráter da relação entre médico e paciente, que se assemelhava à relação saber-objeto; a criação nas instituições psiquiátricas de um mundo à parte das relações sociais complexas, e o não-questionamento das relações de tutela, custódia e de preconceito a respeito de uma “periculosidade social” do louco (Amarante, 1998, p. 93). A segunda experiência de Basaglia ocorreu em Trieste, na década de 1970, onde buscou a superação do modelo de humanização institucional. Nesse momento, o foco deixou de ser a instituição asilar e passou a ser a valorização do papel da comunidade e a forma com que os técnicos estabelecem relação com a loucura. Operou-se uma passagem da posição de intervenção e assistência ao paciente para a posição de abertura e interação com a existência e o sofrimento. Em Trieste, Basaglia realizou a desmontagem do aparato manicomial, com o objetivo de construir novos espaços e novas formas de cuidado para a loucura. Visando o conceito de território, entendido não somente como o espaço físico onde as pessoas residem, mas toda a rede de interrelações que nele se estabelecem, houve a construção diversos serviços com o objetivo de criar um “circuito de atenção”, que deslocou o centro de cuidado da instituição asilar ao território (Amarante, 1998).
O processo da reforma psiquiátrica brasileira teve sua origem na década de 1970, com a denúncia de condições precárias de trabalho e violação de direitos humanos em hospitais psiquiátricos brasileiros (Amarante, 1998). A partir destes atos de denúncia, surgiu o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que organiza sua ação em torno de encontros para a realização de debates e encaminhamento de propostas visando a transformação do cuidado em saúde mental no Brasil. Nos anos 80, temos como marcos históricos a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, ambos ocorridos em 1987. Nesse momento ocorreu uma passagem da meta de transformar o sistema, uma estratégia sanitarista, para a mudança na forma com que as instituições e a sociedade se relacionam com a loucura, sob o paradigma da desinstitucionalização (Tenório, 2002). Ainda nos anos 80, originou-se o movimento de luta antimanicomial, que convoca a sociedade para discutir e reconstruir sua relação com o louco e com a loucura. Um diferencial do movimento da luta antimanicomial é a participação dos usuários e seus familiares nas discussões e encaminhamentos. Todos estes encontros, debates, denúncias e protestos visavam a invenção de novos dispositivos e tecnologias de cuidado à saúde mental e uma rediscussão da clínica psiquiátrica em sua base.
Em 6 de Abril de 2001 foi aprovada a Lei nº 10.216, também conhecida como Lei Paulo Delgado, que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” (Lei nº 10.216, 2001). A lei assegura os direitos desta população, assim como o acesso aos serviços de cuidado à saúde mental, garantindo a humanidade no atendimento e o respeito à pessoa, objetivando a recuperação através da inserção do indivíduo na família, no trabalho e na comunidade. A lei determina que o cuidado deve ser praticado em um ambiente terapêutico e utilizando o mínimo possível de tratamentos invasivos, dando preferência aos serviços comunitários e considerando a hospitalização completa como último recurso para prática do cuidado em saúde mental. A legislação ressalta a responsabilidade do estado no planejamento, oferta, garantia de acesso e posterior avaliação dos cuidados em saúde mental, com a devida participação da sociedade e da família. Dez anos após a promulgação da Lei nº 10.216, temos a instituição da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) através da Portaria nº 3.088. A RAPS propõe a “criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)” (Portaria nº 3.088, 2011). As diretrizes da RAPS reforçam os princípios da reforma psiquiátrica brasileira, como o respeito aos direitos humanos, a autonomia dos usuários e a liberdade da pessoa. A RAPS privilegia o território, apostando na diversificação das estratégias de cuidado e na regionalização dos serviços. Há também o foco na criação de estratégias de educação aos trabalhadores, com o objetivo de promover mecanismos de formação permanente aos profissionais de saúde.
A RAPS é constituída por sete componentes: atenção básica, atenção psicossocial especializada, atenção de urgência e emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar, estratégias de desinstitucionalização e reabilitação social. Cabe aqui aprofundarmos o componente hospitalar, composto por enfermarias especializadas em hospitais gerais e pelo serviço hospitalar de referência para atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. As enfermarias especializadas em hospitais gerais devem oferecer um cuidado articulado com o Projeto Terapêutico Individual (PTI), desenvolvido em conjunto com o serviço de referência do usuário (como um CAPS, por exemplo) e a internação deve ser de curta duração, até a estabilidade clínica do paciente, visando sua contrarreferência a um serviço da atenção básica. Também deve ser garantida a composição de uma equipe multidisciplinar com modo de funcionamento interdisciplinar nas enfermarias. Já o Serviço Hospitalar de Referência para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de drogas oferece internações de curta duração para usuários de álcool e/ou outras drogas quando há indicativos de comorbidades de ordem clínica e/ou psíquica. São preconizadas internações de curtíssima ou curta permanência em regime integral.
Considerando as legislações citadas, que garantem o acesso de pessoas em sofrimento decorrente do transtorno mental ou do uso de drogas à leitos em enfermarias especializadas em hospitais gerais, e o fato de que pacientes com comorbidades psiquiátricas também internam em hospitais gerais somente por razões clínicas, surgem algumas questões: quais são as potencialidades e desafios da prática da psicologia em um hospital geral do SUS que não possui leitos psiquiátricos? Como estes pacientes são acolhidos em uma instituição sem enfermaria específica de saúde mental? Quais são as possibilidades de trabalho do psicólogo com as equipes e com a própria RAPS?
O método escolhido foi o relato de experiência a partir dos registros pessoais da psicóloga (Breakwell et al., 2010). Optamos pelo relato de experiência pois a narração é uma forma valiosa de elaboração do vivido, pois possibilita uma reflexão crítica e potencialmente transformadora da realidade e, além disso, tem como função a comunicação entre os pares e a comunidade (Bondía, 2002). Outro motivo para a escolha de tal método é que o levantamento bibliográfico apresentou uma quantidade relevante de relatos de experiência em hospitais gerais com leitos psiquiátricos, porém, indicou uma escassez de relatos de experiência em hospitais gerais sem leitos psiquiátricos.
Esta pesquisa é fruto das experiências enquanto psicóloga residente em um hospital universitário de grande porte do SUS que não possui leitos psiquiátricos, compreendendo o período de março de 2022 a agosto de 2023. O relato foi estratificado em três níveis: o atendimento a pacientes com diagnósticos de transtornos psiquiátricos internados nas enfermarias de clínica médica, clínica cirúrgica, cuidados paliativos e neurologia; o trabalho com equipes multiprofissionais, tanto das unidades mencionadas, quanto de outros setores do hospital, e a articulação com serviços da RAPS no que concerne às demandas dos pacientes. O relato foi realizado a partir de vinhetas clínicas, impossibilitando a identificação dos indivíduos.
No atendimento aos pacientes, observamos que muitos se apresentam temerosos e desconfiados em relação à equipe. Tal insegurança se manifesta através da recusa a certos procedimentos extremamente importantes para sua estabilidade clínica, ou através da exigência constante e repetitiva por explicações a respeito de seu quadro de saúde. Muitas vezes, os temores estão relacionados a experiências traumáticas em serviços de saúde, incluindo internações involuntárias em hospitais psiquiátricos. Ressaltamos que é papel da equipe fornecer as informações e esclarecer o paciente sobre seu tratamento, assim como acolhê-lo em sua angústia para que o tratamento seja possível. Um paciente ficou aterrorizado ao me ver de jaleco branco: “Meu dentista precisa tirar o jaleco para me atender”, disse, referindo-se ao seu dentista na atenção básica. Qual é a representação que os pacientes possuem da equipe, ou melhor, quais são as ações praticadas nos serviços de saúde capazes de inspirar temor, desconfiança e até medo nos pacientes?
São frequentes os relatos de pacientes que já passaram por internações psiquiátricas e que temem ser novamente encaminhados a uma instituição asilar: “Prefiro pular da janela do que voltar ao hospital psiquiátrico”, disse uma paciente. Percebemos que, apesar dos diversos movimentos de humanização das instituições asilares, os hospitais psiquiátricos brasileiros permanecem como um local aversivo aos usuários. Há relatos de abuso da terapia medicamentosa e o uso da contenção mecânica. Há também o sentimento de angústia dos internos por não possuírem autonomia dentro do hospital psiquiátrico para a construção de um cotidiano organizador, ou até mesmo liberdade para receber visitas ou acessar o mundo fora da instituição.
Os pacientes também sofrem com o estigma da irresponsabilidade. São considerados incapazes de cuidar de si e de sua saúde, apesar de possuírem importantes hábitos e rotinas que servem como uma forma de autorregulação e das quais são completamente desprovidos durante a internação no hospital geral. Há pacientes que fazem longas caminhadas, outros que precisam respirar ar puro e sentir o vento na pele. É frequente que tais pacientes permaneçam acamados em quartos com grades nas janelas. A necessidade de cuidado com esses pacientes muitas vezes se confunde com o estigma da irresponsabilidade, em que a equipe os vê como incapazes de tomarem decisões razoáveis ou até mesmo de possuírem senso crítico. Tal situação se manifesta quando, após a alta, um paciente retornou informando que a receita de sua medicação psicotrópica indicava uma dose diferente da qual estava habituado e que acreditava ter sido um erro da equipe médica. A prescrição foi alterada prontamente.
É evidente como o estigma da periculosidade ainda é presente entre as equipes. O encontro com a diferença, aliado a uma formação insuficiente para lidar com o sofrimento relacionado aos transtornos mentais, faz com que os profissionais partam de estereótipos, fantasias e até mesmo preconceitos ao se relacionar com os pacientes: “Tenho medo de entrar no quarto dele, vai que ele faz alguma coisa… meu tio-avô também era esquizofrênico, ele tentou matar a minha avó”, disse um profissional da equipe enquanto repassava algumas informações sobre um caso. Percebemos que a falta de treinamento para o atendimento de pacientes com necessidades agudas em saúde mental causa insegurança nos membros da equipe, que por consequência não conseguem ofertar o cuidado adequado. Além disso, a falta de recursos das equipes para lidar com crises psiquiátricas leva ao uso de meios de contenção química, como a prescrição de medicações com fortes efeitos ansiolíticos e sedativos, e de contenção mecânica, como o ato de amarrar os braços dos pacientes nos leitos.
Se a relação construída com a diferença é a do medo, os profissionais se veem no impulso de tentar controlar os pacientes para assim se sentirem menos inseguros. Mas o que ocorre quando tais pacientes se recusam a seguir as solicitações das equipes, seja por uma situação de sofrimento intenso relacionado ao transtorno mental, seja por manifestações do próprio transtorno? A legislação prevê uma equipe multiprofissional que atue de forma transversal, ou seja, que os saberes e práticas de cada campo profissional possam construir em conjunto uma proposta terapêutica. Além disso, é fundamental que cada profissão esteja aberta a se deixar transformar pelas diferentes perspectivas e possibilidades de cuidado. O que vemos na prática é a hierarquização dos saberes, tendo o profissional médico o maior poder decisório a respeito de altas, transferências e demais mudanças na proposta terapêutica. Quando as coisas saem do controle, observamos um movimento de frustração, que faz com que os profissionais abandonem certos pacientes à própria sorte, pois passam a acreditar que eles não desejam ser cuidados e que não há nada que possa ser feito. O sentimento de frustração com a falta de recursos para lidar com as demandas de tais pacientes, se não manejado, pode transparecer na forma de comentários, “brincadeiras”, em casos extremos, até mesmo agressões físicas: “Se for para ela pular, diga para subir até o 11º andar, pois pulando do 8º ela não morre”, disse um membro da equipe a outro, ao falar sobre um paciente que apresentava ideação suicida e falava sobre pular da janela durante a internação. O paciente transitava no corredor da enfermaria e escutou a fala.
Ao falar sobre o trabalho de articulação com os demais serviços da RAPS, é preciso ter em mente que a rede é feita e refeita constantemente pelos profissionais de saúde. A rede não é algo concreto, mas sim algo que precisa ser construído de acordo com as necessidades de cuidado de cada paciente e a organização dos serviços em cada região. No que concerne ao período e ao espaço referente a este relato de experiência, observamos a escassez de vagas para acompanhamento psicológico na atenção básica. As Unidades Básicas de Saúde (UBS) possuem poucas vagas para atendimento psicológico, sendo que muitas unidades recebem trabalhadores do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), que precisam dividir sua carga horária entre diversas UBS. Já os CAPS recebem pacientes com privilégio àqueles que já possuem vínculo com o centro ou ou que são encaminhados das UBS e das unidades de pronto atendimento (UPA), recebendo de imediato somente pacientes em crise psiquiátrica. Também há uma escassez de leitos em enfermarias específicas de saúde mental em hospitais gerais da região. Assim, o hospital psiquiátrico permanece como único recurso para manutenção da internação de pacientes que dela necessitam. Vemo-nos numa situação extremamente delicada quando pacientes com um quadro clínico grave apresentam também um transtorno psiquiátrico grave. Pois, enquanto o hospital psiquiátrico não aceita o paciente devido a sua saúde em estado crítico, o hospital geral sem leitos psiquiátricos não possui recursos para a condução de tratamento que considere o sofrimento relacionado ao transtorno mental. Este cenário é reflexo tanto de uma legislação que ainda está em implementação, quanto de retrocessos e cortes no financiamento da política de saúde mental brasileira, que tem se agravado desde o ano de 2016 (Cruz et al., 2020).
Ao longo deste artigo, observamos o surgimento do hospital geral e o consequente enclausuramento da loucura entre suas paredes. Em seguida, o movimento de segregação da loucura em um único lugar, o hospital psiquiátrico. Os diversos movimentos de crítica, reforma e ruptura, além dos relatos dos próprios pacientes dessas instituições, indicam que a instituição asilar está longe de ser a forma ideal para a oferta de cuidado com a saúde mental. A legislação brasileira promove uma reforma psiquiátrica e demarca o papel do hospital geral, que deve ofertar cuidados à saúde mental. Vemos, portanto, o deslocamento do local da loucura, que, de certa forma, parte e retorna ao hospital geral.
O olhar ao passado, assim como o acolhimento às vivências dos dos usuários, familiares e trabalhadores confirmam que a proposta alienista de cura da loucura ou de contenção entre as paredes do manicômio é um paradigma defasado. Se temos como ideal uma sociedade sem manicômios, é fundamental o fortalecimento dos serviços pautados na oferta de cuidado à saúde mental no território, formando um circuito de atenção que não exclua ou isole os usuários da família, do trabalho e da comunidade. É fundamental que o acesso aos serviços seja garantido a todos que deles necessitam, inclusive no hospital geral, com a contrapartida da oferta de um cuidado qualificado e de caráter antimanicomial. As propostas das leis e portarias precisam ser defendidas e aplicadas para que os serviços possam ofertar vagas condizentes com a população a qual atendem. É necessário que os profissionais consigam atender às demandas dos usuários dos serviços e criar vínculos com o território em condições dignas de trabalho.
Além do desenvolvimento de programas de formação continuada aos profissionais de saúde, previstos pela legislação, é de grande importância que a própria relação que esses profissionais constroem com a loucura seja questionada, retificada e transformada. Pois, se o treinamento diz do desenvolvimento de técnica profissional, a formação trata do próprio posicionamento que os profissionais estabelecem com a diferença e quais são as formas de relação que eles conseguem construir com os usuários dos serviços. Assim, não basta somente a proposição de leis e portarias e o aumento de vagas nos serviços voltados à saúde mental. Aqui reafirmamos a responsabilidade dos profissionais de saúde mental e de toda sociedade na defesa da reforma psiquiátrica brasileira, considerando que o campo está e sempre esteve em disputa. É fundamental mudarmos a forma com que a nossa sociedade se relaciona com a loucura, para que a diferença seja acolhida com respeito e humanidade em todos os lugares.
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