Revista CadernoS de PsicologiaS

Psiconefrologia: considerações sobre o percurso profisional
e a construção da prática clínica

Iris Miyake Okumura
(CRP-08/19803)
Fundação Pró-Renal
E-mail: psicologia@pro-renal.org.br | (41) 3312-5479

#Relatos_de_Experiências

Resumo: A regulamentação da Psicologia da Saúde e Hospitalar é recente no Brasil. Diretrizes de assistência ao paciente com Doença Renal Crônica incluem a(o) psicóloga(o) nas equipes multidisciplinares, considerando o impacto psicológico-emocional do diagnóstico e as imposições do adoecimento, assim, compreende-se o acompanhamento ao indivíduo e à família ao longo do tratamento pré-dialítico e seguimento em terapia renal substitutiva. O presente relato de experiência descreveu as atribuições e percepções da(o) psicóloga(o) na Nefrologia. Psicólogas previamente atuantes no cuidado especializado ao paciente renal de uma instituição de terceiro setor em Curitiba-PR foram convidadas a compartilhar o percurso profissional na Psiconefrologia. Os depoimentos foram permeados por inquietações, desafios e gratulações na estruturação do serviço, atividades desempenhadas junto ao paciente e em equipe. Ponderou-se sobre a construção da prática profissional, delineamento e intersecção entre Psicologia e Nefrologia.

Palavras-chave: Psiconefrologia; Doença Renal Crônica; Psicologia da Saúde.

PSYCHONEPHROLOGY: CONSIDERATIONS ON PROFESSIONAL PATH AND THE CONSTRUCTION OF CLINICAL PRACTICE

Abstract: The regulation of Health and Hospital Psychology is recent in Brazil. Assistance guidelines for the patient with Chronic Kidney Disease include the psychologist in multidisciplinary staff, considering the psychological and emotional impact of the diagnostic and impositions of the disease, thus, support for the individual and the family during pre-dialytic treatment and follow-up to renal replacement therapy is understood. The present experience report described the attributions and perceptions of the psychologist in Nephrology. Psychologists who previously worked in the specialized care for the renal patient in a third sector institution in Curitiba-PR were invited to share their professional career in Psychonephrology. The statements were permeated by concerns, challenges and gratitude in structuring the service, activities done with the patient and the team. The construction of professional practice, outline and intersection between Psychology and Nephrology were considered. 

Keywords: Psychonephrology; Chronic Kidney Disease; Health Psychology.

PSICONEFROLOGÍA: CONSIDERACIONES SOBRE LA TRAYECTORIA PROFESIONAL Y LA FORMACIÓN DE LA PRÁCTICA CLÍNICA

Resumen: La reglamentación de la Psicología de la Salud y Hospitalaria es reciente en Brasil. Las directrices de asistencia al paciente con Enfermedad Renal Crónica incluyen la(al) psicóloga(o) en equipo multidisciplinario, considerando el impacto psicológico y emocional del diagnóstico y las imposiciones de la enfermedad, así se comprende el apoyo al individuo y a la familia durante el tratamiento prediálisis y el acompañamiento a la terapia de reemplazo renal. El presente relato de experiencia describió las atribuciones y percepciones de la(del) psicóloga(o) en Nefrología. Se invitó a psicólogas que actuaron anteriormente en la atención especializada al paciente renal en una institución del tercer sector en Curitiba-PR para compartir su trayectoria profesional en Psiconefrología. Los discursos fueron permeados por preocupaciones, desafíos y gratitud en la estructuración del servicio, actividades realizadas con el paciente y el equipo. Se consideró la construcción de la práctica profesional, el contorno y la intersección entre la Psicología y la Nefrología.

Palabras-clave: Psiconefrología; Enfermedad Renal Crónica; Psicología de la Salud.

Introdução

Regulamentada como profissão no Brasil em 1962, a Psicologia foi ampliada para diversas áreas de atuação neste percurso histórico. A especialidade em Psicologia Hospitalar foi reconhecida no ano de 2000 e a Psicologia em Saúde somente em 2016 (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2019), focadas no processo saúde-doença, avaliação e acompanhamento psicológico do indivíduo, abrangendo os domínios afetados direta e indiretamente pelo adoecimento.

O Conselho Regional de Psicologia da 8ª região fez um levantamento com 53 psicólogos participantes em evento interno no ano de 2006 e constatou que parte desses profissionais atuavam em meio ambulatorial com: bebês de risco, fibrose cística, adolescentes, mielomeningocele, crianças e adolescentes vitimizados, epilepsia, dor crônica e saúde mental em geral. Do total, 13% estavam alocados em instituições filantrópicas (CRP-08, 2007).

A exemplo dessa composição, a Fundação de Amparo à Pesquisa em Enfermidades Renais e Metabólicas (Fundação Pró-Renal) é uma Organização da Sociedade Civil que atua há 40 anos em prol do ensino, pesquisa e assistência ao paciente diagnosticado com doença renal. Foi fundada pelo nefrologista Dr. Miguel Carlos Riella em 1984 e caracteriza-se pela atenção à saúde em nível secundário de média complexidade. A formação e funcionamento do serviço respeitam as portarias de saúde (nº 2042 de 11 de outubro de 1996 e nº 211 de 15 de junho de 2004), contando com uma equipe multidisciplinar para o cuidado integral do paciente.

A doença renal crônica (DRC) é descrita por anormalidades na estrutura e função dos rins (glomerular, tubular e endócrina) que impactam à saúde por mais de três meses com perda progressiva e irreversível da função renal (Romão Junior, 2004; Kidney Disease Improving Global Outcomes, 2024). É considerada um problema de saúde pública pelo aumento de diagnósticos, prevalência e investimento humano, financeiro e estrutural necessários para o tratamento desses indivíduos. Segundo Romão Junior (2004, p. 01), “a incidência de novos pacientes cresce cerca de 8% ao ano (…). O gasto com o programa de diálise e transplante renal no Brasil situa-se ao redor de 1,4 bilhões de reais ao ano”.

A instituição previamente mencionada realiza atendimentos que abrangem a saúde suplementar e o Sistema Único de Saúde, por meio do qual recebe encaminhamentos via Unidade Municipal de Saúde de Curitiba e do Consórcio Metropolitano de Serviços do Paraná. Atua fortemente na promoção da saúde e também investe na prevenção da doença renal. Para isso, organiza feiras de saúde, ações lúdicas e informativas junto à comunidade por todo o estado do Paraná.

As intervenções psicológicas desta fundação iniciaram em 1985 por meio de voluntariado e atuou predominantemente nas modalidades de terapia renal substitutiva, sendo quatro clínicas de hemodiálise e duas de diálise peritoneal. Após mudanças na gestão a partir de 2021, a equipe multiprofissional tem se dedicado ao atendimento clínico ambulatorial às pessoas em modalidade conservadora (estado pré-dialítico).

A estruturação do serviço de Psicologia ocorreu no ano 2000, coincidente às normatizações da Psicologia Hospitalar no Brasil (CFP, 2019). Nessa trajetória, contou com a colaboração de 23 psicólogas(os) e algumas dezenas de estagiários, em parceria supervisionada com docentes do curso de Psicologia de diferentes universidades. O setor já foi composto por até seis profissionais concomitantemente para lidar com a demanda de cerca de mil pacientes nas seis unidades de tratamento supracitadas. O objetivo deste artigo foi descrever o papel da(o) psicóloga(o) da saúde, desafios e intersecções entre Psicologia e Nefrologia no contexto ambulatorial.

Método

Este é um relato de experiência profissional cuja narrativa foi construída por quatro profissionais que já integraram a(s) clínica(s) e ambulatório de tratamento nefrológico, alinhada com as percepções da atual responsável pelo setor de Psicologia da referida instituição. Pontua-se que todas(os) as(os) profissionais que integraram o serviço foram procuradas(os) e 4/23 não foram encontradas(os).

Assim, 19 psicólogas foram contatadas via mensagem eletrônica (e-mail, celular e/ou redes sociais) para responderem sobre o trabalho desenvolvido na instituição. As questões evocaram lembranças sobre as funções exercidas, aprendizados e desafios profissionais e a construção da Psiconefrologia.

Três psicólogas responderam por escrito e uma optou pelo áudio de aplicativo telefônico, cientes do uso e compartilhamento dessas informações. Sete não retornaram (com a possibilidade de estarem com o contato desatualizado ou inativo), sete aceitaram o convite mas não responderam às questões e uma recusou. Devido ao caráter voluntário da participação, prezou-se pelo livre-arbítrio e não insistência. A seguir, foram apresentados pontos em comum nos depoimentos das psicólogas, compreendendo também a história do setor de Psicologia na instituição.

A Psiconefrologia

Historicamente, o termo Psiconefrologia foi cunhado na década de 1965 pelos médicos psiquiatras Norman Levy e Atara DeNour, os quais se dedicaram a avaliar o impacto psicológico da doença renal particularmente em pacientes submetidos à diálise e transplante (Levy, 2008; Psychonephrology, 2016). Ainda que escassas, as publicações científicas são majoritariamente feitas por profissionais médicos, a exemplo disso, em breve pesquisa com o descritor “psychonephrology” na base Pubmed traz apenas 13 trabalhos entre os anos de 1988 e 2024 1. Anterior a isso e fora do escopo de artigos científicos, destaca-se a obra de dois volumes intitulados “Psychonephrology”, fruto dos eventos científicos International Conference on Psychological Factors in Hemodialysis and Transplantation e International Conference on Psychonefrology, da autoria de Levy e colaboradores datadas de 1978 e 1981.

Levy (2008) descreveu a Psiconefrologia como o estudo das desordens psiquiátricas no paciente renal crônico, cujos estressores envolvem conflitos de dependência e independência, expectativas irreais, colaboração às orientações médicas e a experiência de perdas. DeNour (1983) reconheceu que apesar da psiquiatria ter se debruçado há algum tempo sobre os aspectos psicológicos da DRC em pacientes submetidos à diálise, era difícil descrevê-los pelas contradições das informações disponíveis, principalmente pela metodologia dos estudos observacionais ou com amostragem pequena.

A especificidade da Psiconefrologia é justificada pela complexidade clínica no aspecto crônico da doença em si, tratamento em longo prazo, comorbidades e polifarmácia. Estes são fatores de risco para mudanças emocionais e cognitivas (Kim, Kim, & Gil, 2022), desencadeamento de distúrbios de humor e relação com outros transtornos mentais (Li, Zhu, Shen, & Miao, 2023; Carswell, Cogley, Bramham, Chilcot, Noble, & Siddiqi, 2023) e piora do prognóstico (Lee et al., 2018). Nesse ínterim, ressalta-se a análise dos aspectos psicológicos desde o diagnóstico, não somente nas modalidades terapêuticas substitutivas como nos estudos iniciais de Levy e DeNour.

Foca-se sobre o impacto do adoecimento renal na vida do indivíduo que inclui a conciliação da rotina e cuidados à saúde: comparecimento às consultas, tomada de medicamentos, realização de exames, mudanças de hábitos alimentares e atividades físicas, bem como as consequências sócio-relacionais, funcionais e emocionais.

O trabalho da(o) psicóloga(o) em Saúde e Hospitalar visa desenvolver promoção à saúde, prevenção de doenças, avaliar e intervir “sobre os efeitos do adoecer e do tratamento na realidade psíquica, assim como destacar os aspectos psicológicos e a diversidade de vivências que podem estar implicadas no processo do adoecer” (CFP, 2019; CRP-08, 2007).

O setor de Psicologia está presente na referida fundação há 24 anos e concentrou suas atividades no cuidado ao doente renal crônico, do diagnóstico e acompanhamento clínico em tratamento ambulatorial às terapias substitutivas. Os principais desafios elencados pelas psicólogas entrevistadas foram: a estruturação de um serviço junto à regulamentação e descrição das atividades que competem à Psicologia Hospitalar e da Saúde; a atuação no terceiro setor e a obtenção de recursos humanos e materiais para o desenvolvimento da prática; a “cronificação” do paciente renal e sua compreensão das orientações.

Construção do setor e descrição das atividades

Conforme citado previamente, a regulamentação da Psicologia Hospitalar e da Saúde são recentes no Brasil, ademais, os parâmetros psicológico-assistenciais na saúde pública e privada foram estabelecidos em 2022 (Brasil, 2022). À medida que essas áreas foram reconhecidas e implementadas, o papel das(os) psicólogas(os) que atuavam em instituições de saúde também pôde ser definido. Uma das participantes entrevistadas trouxe a vivência desse pioneirismo, em busca por referências externas (autores e profissionais de outros estados e países) para caracterizar os objetivos, a função, deveres e limitações do fazer psicológico na saúde:

Dada à realidade da época, eu comecei a atuar como profissional em 2002, nessa época a literatura não era tão avançada como hoje, na área da saúde, o papel do psicólogo em contexto hospitalar e na saúde; quem dirá na prática. (…) A atuação do psicólogo era, no contexto de saúde hospitalar, era uma área muito nova. Quem dirá na Psiconefrologia que [é] ainda mais específico. (…) Então, por um lado desafiador, sentia a carência desse conhecimento, mas é o que também motivou, mobilizou a correr atrás. Foi um desafio que me gerou aprendizado e conhecimento. (Entrevistada 01).

Foram desbravadoras na articulação teórico-prática e delineamento do dia-a-dia, retratado nas seguintes falas: “Não havia um protocolo fixo. Tínhamos autonomia para fazer os atendimentos de psicoterapia à beira de leito e atender as demandas [da fundação]”; e a declaração de outra psicóloga:“Acredito q deve ter aí ainda os primeiros POP’s [Procedimento Operacional Padrão] montados por mim com as diretrizes do Serviço de Psicologia” (Entrevistadas 04 e 02), que remetem ao envolvimento na construção do trabalho e importância da sensação de pertencimento na história do setor e da Psicologia.

As profissionais relataram que suas funções eram: realizar visita clínica e atendimento ao paciente; visitas domiciliares (quando necessário); atividades de grupo educativas, motivacionais e/ou reflexivas em sala de espera e de hemodiálise visando abranger o grande número de pacientes; suporte e orientações aos familiares; participação de reuniões em equipe, treinamento e palestras relacionadas à saúde mental e doença renal aos funcionários da instituição; organização e participação em eventos científicos. Convergem com as diretrizes atuais elaboradas pelo Conselho Federal de Psicologia, vide documento anexo da resolução 17/2022 referente às “Ações propostas para a psicóloga e o psicólogo na atuação secundária – serviços de atenção hospitalar” (Brasil, 2022), dentre outras atribuições.

Além do atendimento aos pacientes e suporte aos familiares, coube às psicólogas investimento em educação por meio da organização de eventos voltados a acadêmicos e profissionais de Psicologia e de outras áreas da saúde. Já foram realizadas cinco jornadas multidisciplinares e seis edições voltadas para psicólogas(os), alguns minicursos e simpósios com temas relacionados à Psiconefrologia, o último, realizado em agosto de 2024. Com o advento da pandemia pelo COVID-19, investiu-se na modalidade remota com gravações de módulos em “Introdução à Psiconefrologia” e “Neuropsicologia e Envelhecimento na Doença Renal Crônica”, por exemplo, e atualmente conta com uma parceria de ensino técnico e superior para divulgação dos materiais.

Atuação no terceiro setor

A consolidação do papel da(o) psicóloga(o) na área da saúde tem sido um processo laborioso, sobretudo em locais com recursos humanos e materiais restritos. Essa é a realidade de muitos centros vinculados ao Sistema Único de Saúde e também do terceiro setor, ambas esferas abrangidas pela instituição previamente mencionada.

Organizações da Sociedade Civil são entidades sem fins lucrativos que visam transformar a comunidade e promover “direitos sociais, conscientização socioambiental e combate à exclusão social, sobretudo no atendimento às pessoas em situação de vulnerabilidade” (Brasil, 2024). A fundação mantém seus recursos com o apoio de pessoas físicas e jurídicas, cujas doações retornam em benefícios assistenciais ao paciente renal crônico.

O depoimento de uma das psicólogas ilustrou que o trabalho nesse meio exige, além da expertise profissional, pró-atividade, identificação com a causa institucional e altruísmo, “(…) ‘trabalhar por amor’ como eu via nos meus colegas (…)” (Entrevistada 04), por vezes improvisando ou adaptando-se às (poucas) condições disponíveis no momento.

Uma situação que traz dificuldade também pode gerar superação e a chance de se reinventar. O sentimento de se doar, dar muito de si, colocando à prova a capacidade de adaptação para fazer o melhor com o que se tem, reverte em aprendizado. A mesma psicóloga ressignificou:

Eu costumo dizer que [na fundação] eu tive a oportunidade (que não sei se em algum momento terei a mesma oportunidade disso na minha vida profissional) de trabalhar não só com [o] que eu gostava e fazendo o que eu gostava… eu trabalhava com quem eu admirava (e me inspirava) e fazia o que eu acreditava. Isso, definitivamente, não tem preço. (Entrevistada 04).

O objetivo comum das psicólogas (e da equipe multiprofissional), alinhado à missão institucional de pesquisa, educação e cuidado, reflete na satisfação com o trabalho e contrapartida percebida e recebida pelos pacientes e pela chefia. O fruto dessa prática apareceu no relato das participantes nos excertos: “A recepção dos pacientes [foi um dos fatos mais marcantes], eles sabiam que teriam um momento para eles e gostavam disso. Uma experiência de vida que trouxe reflexões pessoais e profissional. Muito aprendizado!” (Entrevistada 03). E também ao recordar o que mais apreciava no trabalho: “o acolhimento e autonomia. Autonomia tanto na forma técnica de realizar meu trabalho, (…) e o reconhecimento e respeito das chefias” (Entrevistada 04).

Percepção profissional sobre as demandas do paciente renal

Dentre os aspectos a serem investigados na intervenção psicológica e que se observa como demanda pelo paciente renal, verifica-se a compreensão sobre a própria condição médico-clínica – o diagnóstico e manejo do tratamento da doença renal crônica. As consultas geralmente são permeadas por termos técnicos, seja parâmetros bioquímicos ou medicamentos, que podem dificultar a apreensão das orientações. Uma das psicólogas participantes da entrevista relembrou sobre a importância de ajudar a situar o paciente:

com relação ao próprio tratamento, a gente via uma dificuldade, bastante, de compreensão que não era só uma resistência a aceitar. [Na rotina] muitas vezes os médicos falam “medicamente falando” porque estão acostumados com aquela informação, mas o paciente ali, é um primeiro momento, onde não se entende muito o que tá acontecendo, e aquela enxurrada de informação do que ele deve fazer. (Entrevistada 01).

A capacidade de compreensão não depende somente da cognição ou nível de escolaridade do paciente. Perpassa outros domínios de inserção e interação que ganham mais complexidade quando há vulnerabilidades emocionais, sociais e econômicas. A comunicação entre profissionais de saúde, o paciente e a família deve ser acessível, coerente e entendível para ambos; para que o paciente e a família possam captar as informações e para que o profissional tenha segurança de que o conteúdo repassado foi apreendido. Justifica-se a presença do familiar ou um acompanhante junto às consultas médicas e de nutrição para minimizar os ruídos no repasse das orientações, bem como incentivar o suporte sócio-familiar.

Na referida instituição, acolhe-se em atendimento psicológico o familiar / acompanhante para que também conheça o fluxo ambulatorial, a profissional como integrante da equipe de saúde e os objetivos da consulta. Nas situações em que o paciente apresenta acuidade auditiva diminuída ou prejuízo cognitivo significativo, a presença do acompanhante em consulta psicológica é essencial para obtenção da história mórbida e de vida. Demais casos, o relato é complementar ao do paciente e se sugere que este entre sozinho.

Algumas famílias concordam com a intervenção, outras se mostram resistentes, e há circunstâncias em que o próprio paciente prefere estar acompanhado. Relevam-se a expressividade, privacidade e motivação do paciente no compartilhamento das demandas, “nenhum profissional de saúde impõe seu trabalho. O paciente pode ou não aceitar determinado atendimento. O psicólogo oferece o trabalho, tem a função de ouvir e, a partir do diagnóstico e da fala do paciente, situa a demanda, se houver” (CRP-08, 2007, p. 27-28).

O processo é enfrentado pelo paciente, pois diz respeito a sua jornada e história de vida, mas pode ser construído junto à rede de apoio que inclui a(o) psicóloga(o), demais membros da equipe de saúde e familiares / amigos. Conciliar e adaptar às mudanças trazidas pela doença, pode ser abordado em atendimento psicológico. Uma das entrevistadas ressaltou a contingência psico-emocional na atuação profissional: “poder levar conforto e esperança ao paciente, mesmo entendendo que diante do quadro da maioria deles, os aspectos depressivos eram severos” (Entrevistada 02).

Uma pesquisa em qualidade de vida realizada pelas psicólogas desta organização de terceiro setor, encontrou que mulheres com doença renal crônica em hemodiálise apresentaram menor qualidade de vida em geral em comparação a mesma população do gênero masculino; quanto mais internamentos, menor a funcionalidade física e bem-estar emocional; e que pacientes com até cinco anos de tratamento apresentaram escore ligeiramente menor do que aqueles em período maior em hemodiálise, o que pode estar relacionado com o vínculo e recebimento do apoio da equipe de saúde (Oliveira, Schmidt, Amatneeks, Santos, Cavallet, & Michel, 2016).

Outro aspecto levantado por uma das psicólogas entrevistadas foi a cronificação, entendida no âmbito da doença renal (crônica e progressiva), do paciente que reproduz comportamentos mal-adaptativos e rígidos, e da equipe de saúde que mesmo ciente das dificuldades e vulnerabilidades “não era preparada para lidar com a cronicidade da doença e do tratamento e, portanto, nem sempre [tinha] manejo adequado com [os] pacientes” (Entrevistada 04).

O acolhimento não é exclusivo da Psicologia. Ainda que o indivíduo traga sofrimento e importante carga emocional durante o atendimento de outro membro da equipe, o(a) profissional pode fazer uma intervenção inicial e levar a demanda à(ao) psicóloga(o) em interconsulta ou consulta conjunta2.

A partir disso, pontuam-se sucintamente as demandas: compreensão do adoecimento e das informações relacionadas à doença, oscilação do estado de saúde e do bem-estar físico e emocional pelo tempo prolongado e indeterminado de tratamento, importância do suporte sócio-afetivo. Se o paciente tiver questões a compartilhar no andamento da consulta, prioriza-se a demanda apresentada por ele: “quando se preconiza que o paciente fique livre para falar sobre o que quiser, está se priorizando a queixa principal dele e não a do diagnóstico médico ou da equipe. Afinal, quem define a queixa: paciente ou psicólogo?” (CRP-08, 2007, p. 28).

Outros desafios

Adicionam-se os fatores tempo para atendimento e setting na Psicologia da Saúde e Hospitalar, questões observadas no meio ambulatorial e que também precisam ser manejadas no trabalho assistencial. Sobre o tempo, orienta-se que “os atendimentos devem ter começo, meio e fechamentos, focados e diretivos, com duração média de trinta a quarenta minutos” (CFP, 2019).

O tempo era ainda mais limitado nas clínicas pela abordagem à beira leito (nas poltronas) durante as sessões de hemodiálise. As psicólogas participantes da entrevista mencionaram estratégias para abarcar o quantitativo de pacientes através de atividades em grupo e visitas clínicas que ajudavam a sinalizar a disponibilidade da profissional e a possibilidade de serem solicitadas para atendimento individual.

À época em que o trabalho era realizado nas clínicas de hemodiálise, havia o obstáculo da falta de ambiente privativo – em uma das estruturas, por exemplo, havia uma sala a ser dividida entre nutricionista, assistente social e a psicóloga. Hoje a instituição disponibiliza um consultório para cada profissional. Ainda há interferência sonora, mas é possível balizar dificuldades com o setting terapêutico.

Outro desafio enfrentado na fase atual do setor de Psicologia é a atuação solo acarretada pela redução do quadro de psicólogas(os) por vontade das(os) próprias(os) profissionais e pela mudança na quantidade e do público majoritário atendido. A presença de apenas uma psicóloga e, portanto, uma agenda aberta para assistência, dificulta o acompanhamento ao paciente e ao familiar considerando as ações compartilhadas (atenção à família, reuniões de equipe, elaboração de plano terapêutico), de atendimento específico no exercício da(o) psicóloga(o) na atenção secundária (CFP, 2022) e outras demandas da instituição.

As Psicólogas na instituição

Todas demonstraram satisfação com o trabalho exercido na instituição que oportunizou a vivência do adoecer na perspectiva do paciente, o impacto da doença renal crônica nos hábitos e estilo de vida do indivíduo, percebendo a complementaridade e indissociabilidade do aprendizado e crescimento na vida pessoal e profissional. O contato com as pessoas e a habilidade de escutar o que o outro tem a dizer permite conhecer sua condição e como chegou até ali, tendo que encarar uma rotina centrada na saúde.

Algumas psicólogas foram contratadas após vínculo de estágio da graduação e associam o local com o início e impulso à carreira: “Me deu uma base muito sólida pra seguir e estar até onde eu ‘tô’, que foi rico em conhecimento e essa riqueza pessoal também” (Entrevistada 01); e formar uma identidade mais segura enquanto profissionais: “Ressignificação da Psicologia e de mim mesma como pessoa e como profissional. Vivenciei na prática que eu era capaz de, por meio da ciência psicológica, auxiliar um sujeito a transformar a sua trajetória” (Entrevistada 02).

O trabalho junto à equipe multidisciplinar e, principalmente, dentro de um serviço constituído por mais psicólogas foram características apreciadas pelas entrevistadas. A formação e organização do setor de Psicologia foi viabilizada nas decisões conjuntas e a cada demanda recebida, institucional ou trazida pelo paciente e contexto da DRC, observou-se a importância do fortalecimento da relação intrasetorial, entre as psicólogas da fundação, e com outras(os) colegas atuantes em Psiconefrologia: “O ponto alto foi fazer parte de uma equipe de trabalho engajada, cuidadosa, ética. Sem dúvida estar com essa equipe nos cursos de Psiconefrologia com pessoas de diferentes partes do país foi incrível” (Entrevistada 04). Atividades de supervisão, troca de experiências, leitura e discussão de estudos de caso propiciam qualidade e confiança na assistência psicológica ao indivíduo.

Enalteceram o aprimoramento profissional e incentivo à educação continuada, com apoio de chefias e confiança depositada para conciliar os deveres nas clínicas com o tempo de estudo. Nesse ínterim, contabilizam vários relatórios de estágio e trabalhos de conclusão de curso, bem como produtos de pesquisa stricto sensu 3,4,5,6 e 7

As psicólogas mencionaram também sobre a saída da Fundação, em suma, uma decisão que exigiu bastante reflexão. Parte dos depoimentos ponderou entre o seguimento profissional e as transformações na vida pessoal, como o aceite a outras oportunidades de trabalho e dedicação à família. Apesar dos avanços na legislação trabalhista, o regime em vigor é problematizado em diferentes áreas de atuação e locais de trabalho, sobretudo diante da maternidade.

Considerações finais

Nos últimos 24 anos o setor de Psicologia da fundação supracitada atuou na assistência ao paciente diagnosticado com doença renal crônica, participou do desenvolvimento no campo da saúde e promoção da profissão. O presente relato de experiência propôs a descrição das atribuições e percepções da(o) psicóloga(o) em um serviço ambulatorial de Nefrologia através do relato de algumas profissionais que compuseram o setor na atenção secundária.

A história da Psicologia é construída a partir da narrativa das(os) psicólogas(os), cuja função é definida e aprimorada no próprio fazer, com atenção às demandas observadas e encaminhadas, postura empática e mediadora do processo psíquico do paciente. Nos contextos de saúde e hospitalar, é a(o) profissional que se apresenta ao paciente e procura inicialmente compreender aspectos subjetivos relacionados ao adoecimento, “isto é, como a enfermidade incide e o sentido que tem para aquele que adoece” (CRP-08, 2007, p. 45).

A Psiconefrologia participa de toda a trajetória de adoecimento do indivíduo, acompanhando-o do momento em que chega ao ambulatório para confirmação diagnóstica da insuficiência renal crônica e início do cuidado especializado até as modalidades de terapia substitutiva. As psicólogas entrevistadas foram solicitadas a resumir a trajetória no terceiro setor e trouxeram as palavras: solidariedade, cuidado e gratidão. O trabalho reforçou a oportunidade de aprendizado e de revisitar valores da condição de ser humano: “não tem como você lidar com fragilidades do outro sem que isso reflita um pouco sobre as suas, e o quão grato você deve ser pela vida” (Entrevistada 01).

Estimula-se a construção profissional da Psicologia da Saúde e Hospitalar, sobretudo na Nefrologia. A Psiconefrologia tem muito a aprofundar em estudos sobre o paciente renal crônico e suas relações, intervenções e orientações efetivas para a adaptação ao tratamento. A consolidação da prática ou de um setor é processual, viabilizada pelo aprimoramento contínuo da(o) psicóloga(o), adequações nas atividades e procedimentos de rotina e perante as demandas do paciente.

Notas

[1] Busca realizada em agosto/2024 na base de dados Pubmed.

[2] Mello Filho & Silveira (2005, p. 148) conceituam que interconsulta é “uma ação de saúde interprofissional e interdisciplinar que tem por objetivo integrar e promover a troca de saberes de diferentes atores que atuam nos serviços de saúde”. Já a consulta conjunta “reúne, na mesma cena, profissionais de diferentes categorias, o paciente e, se necessário, a família desse. A ação se faz a partir da solicitação de um dos profissionais para complementar e/ou elucidar aspectos da situação de cuidado em andamento que fujam ao entendimento do solicitante ao traçar uma conduta terapêutica”.

[3] Oliveira, E. P. (2012). Fatores que influenciam a decisão de médicos, equipe de enfermagem e pacientes renais pela modalidade de tratamento dialítico. Dissertação. Mestrado em Ciências da Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

[4] Amatneeks, T. M. (2018). Estudo Psicométrico e Correlacional do Montreal Cognitive Assessment Basic (MOCA-B) na Doença Renal Crônica. Dissertação. Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paraná.

[5] Schmidt, D. B. As Funções Executivas e Personalidade de Pessoas com Doença Renal Crônica em Hemodiálise. Dissertação. Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paraná.

[6] Walter, L. R. S. (2022). Comprometimento cognitivo leve em pacientes em terapia hemodialítica: estudo de coorte. Dissertação. Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paraná.

[7]  Santos, J. C. (2023). Imaginário e Envelhecimento: experiência de idosos com Doença Renal Crônica na perspectiva da Psicologia Analítica. Tese. Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo.

Referências

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Como citar esse texto

ABNT — OKUMURA, I. M. Psiconefrologia: considerações sobre o percurso profissional e a construção da prática clínica. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/psiconefrologia-consideracoes-sobre-o-percurso-profissional-e-a-construcao-da-pratica-clinica/. Acesso em: __/__/___.

APA — Okumura, I. M. (2024). Psiconefrologia: considerações sobre o percurso profissional e a construção da prática clínica. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/psiconefrologia-consideracoes-sobre-o-percurso-profissional-e-a-construcao-da-pratica-clinica/