Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder é uma importante obra do sul-coreano Byung-Chul Han – um dos principais expoentes da “nova geração” de filósofos responsáveis pela democratização de um discurso que, durante muito tempo, restringiu-se ao meio acadêmico. Embora sua pesquisa seja de fôlego com referências a diversos autores fundamentais da filosofia contemporânea como Heidegger, Foucault e Deleuze, a forma como o texto é construído faz com que sua leitura se mantenha acessível ao longo de todo o trabalho.
Byung-Chul Han divide o livro em treze pequenos capítulos que representam uma linha teórica de contornos bem definidos a respeito do questionamento sobre o regime neoliberal, a liberdade, o sujeito e as crises verificadas na intersecção desses conceitos. Ainda que a formação de Han, bem como as referências utilizadas por ele sejam quase que exclusivamente da filosofia, a amplitude de sua discussão afeta (e é afetada) diretamente por outras áreas do saber como a sociologia, a economia e, principalmente, a psicologia. Não obstante, a noção de “psicopolítica” é construída ao longo da obra como a expressão de um novo tipo de controle que incide não somente sobre os corpos, mas, principalmente, sobre as mentes.
Diferentemente das resenhas que discutem separadamente cada capítulo da obra, optaremos por uma metodologia que consiste na divisão do trabalho em dois grandes recortes epistemológicos que permeiam todo o livro: a biopolítica e a psicopolítica. Tal opção justifica-se pela quantidade elevada de capítulos que o livro apresenta em relação ao seu número total de páginas.
Inicialmente, é possível afirmar que a obra Psicopolítica gira em torno de uma questão principal: a noção de liberdade. Segundo o Han (p. 9-13), o neoliberalismo apresenta a proposta de um homem livre das imposições alheias, contrária ao modelo da dialética hegeliana onde há o servo versus o senhor, o explorado versus o explorador. O que passa a existir no modelo neoliberal é apenas a ideia de que o sujeito é servo apenas de si mesmo. Ou seja, aquilo que está na base da liberdade individual – a ausência de um senhor – estabelece um novo tipo de servidão articulada ao imperativo da coerção interna.
Antes de tratar as especificidades da noção de liberdade de modo mais vertical, Han (p. 13-18) propõe uma discussão acerca da teoria marxista de luta de classes e a mutação sofrida pelo capitalismo na sociedade neoliberal. Segundo o filósofo, o capitalismo encontrou uma saída quando passou do modelo industrial para um formato imaterial, tornando o ideário comunista impossível na medida em que a luta de classes é substituída pelo fomento ao empreendedorismo que “elimina a exploração alheia da classe trabalhadora” (p. 14). A ditadura do capital é uma realidade da qual não podemos escapar, muito pelo contrário, mergulhamos de maneira profunda sem perceber. Nas palavras do autor:
[…] no regime neoliberal não existe um proletariado ou uma classe trabalhadora que seria explorada pelo proprietário dos meios de produção. Na produção imaterial, de um jeito ou de outro, cada um possui seu próprio meio de produção. O sistema neoliberal não é mais um sistema de classes em sentido estrito. Ele não se constitui por estratos antagônicos da sociedade. É aí que reside a estabilidade do sistema (p. 15).
Não obstante, Han (p. 25-28). nos mostra que as relações de poder continuam em jogo ainda que disfarçadas na sua própria manifestação. Hoje, o poder é mais inteligente e atua silenciosamente, assumindo uma forma permissiva, colocando de lado sua negatividade e se passando por liberdade. O sujeito, inconsciente de sua submissão, sente-se livre e submete-se ao contexto de dominação por si mesmo. O poder inteligente produz emoções positivas e as explora, seduzindo e indo ao encontro do sujeito. Essa forma de poder cria uma servidão voluntária, pois lê e avalia nossos pensamentos conscientes e inconscientes, baseando-se na auto-organização e na otimização pessoal voluntária. O poder inteligente neoliberal busca agradar e gerar dependência
É a partir daí que surge a comparação entre a biopolítica e a psicopolítica. As sociedades disciplinares caracterizavam o primeiro modelo, centrado no controle do corpo, sendo representado no livro pela figura da toupeira que se limita a espaços disciplinares. Já o indivíduo das sociedades neoliberais seria representado pela serpente que, contrapondo a toupeira, serve-se da liberdade e do movimento. Nas palavras de Han (p. 30): “a toupeira é trabalhadora. A cobra, por sua vez, é empreendedora”.
Estabelecendo uma analogia com as formas de trabalho na atualidade, não seria possível comparar o habitat e os movimentos da toupeira e da serpente com aquilo que ocorre no trabalho das fábricas ou dos escritórios para o que hoje é chamado de home office? No entanto, tal transição não é sem preço. Han nos lembra que a serpente encarna a culpa e as dívidas (como no mito de Adão e Eva), elementos que são empregados pelo regime neoliberal como meios de dominação (p. 31).
A crítica de Han à biopolítica de Foucault concentra-se na ideia de que ela não é capaz de explicar a ideologia neoliberal. Os argumentos utilizados pelas sociedades disciplinares não têm a mesma eficácia de outrora devido à demanda de liberdade do indivíduo neoliberal. O capitalismo descobriu a psique como sendo uma força produtiva e o “corpo dócil”, que fora anteriormente citado por Foucault, já não tem mais lugar nesse processo de produção, que agora dá lugar ao “sexy e fitness” como características supervalorizadas. Esse “corpo neoliberal” deve ser melhorado em eficiência e desempenho assim como em suas capacidades cognitivas. Nota-se, portanto, a partir da análise deste cenário, o surgimento da figura do coach como aquele capaz de eliminar os bloqueios funcionais que interferem na esperada eficiência.
Seguindo nessa linha de entendimento, Han (p. 49-53) relembra o método de tratamento de choque e administração de pesadas drogas, utilizada por Ewen Cameron, que tinha como objetivo erradicar todo o mal do indivíduo e produzir uma nova personalidade após o “apagamento”. O “choque” hoje é no sentido de reprogramar o indivíduo de modo que ele não perceba e se submeta voluntariamente a tal projeto. Cabe aqui a correlação entre a experiência do eletrochoque de Cameron e o posicionamento de parte da comunidade médica em relação à retomada do eletrochoque (ou eletroconvulsoterapia) como método terapêutico em casos, por exemplo, de depressões graves que não respondem à psicoterapia e medicação habitual. Não seria o argumento utilizado em defesa do ECT possível, justamente, por estar em conformidade com os ideais de aumento da performance e produtividade, próprios do neoliberalismo? Afinal, não é para disciplinar e sim para potencializar!
A nova técnica de poder do Estado neoliberal apontada por Han (p. 55-58) é comparada ao Estado de vigilância de George Orwell. Na obra 1984, o país retratado encontrava-se em guerra permanente com transmissões televisivas diárias contrárias à oposição governamental. As armas utilizadas eram a lavagem cerebral com eletrochoque, a privação de sono, o isolamento, a administração de drogas e a tortura física. Em contrapartida, o que vemos hoje como técnica de poder do regime neoliberal é o controle psicopolítico do futuro e não a administração do passado. A escassez do Estado de vigilância de Orwell é substituída pela abundância de positividade.
Esse inclusive é um grande aspecto levantado por Han (p. 59-68): positividade versus negatividade. Nesse sentido, não há interesse em qualquer processo que leve o indivíduo à reflexão. A relação com a emoção em detrimento ao sentimento é explorada com mais intensidade no tempo em que vivemos caracterizando o que o autor chama de “capitalismo da emoção”. Afeto e emoção – como representantes de uma descarga mais imediata, limitada ao instante – estão em jogo nas relações de consumo, por exemplo, onde ganha força o valor de culto em substituição ao valor de uso. O sentimento de liberdade e a aceleração da comunicação favorece a transformação emotiva na medida em que a racionalidade é mais lenta que a emotividade. Assim, com o avanço da aceleração comunicativa, o indivíduo encontra-se subordinado a uma ditadura da emoção.
Han (p. 69-74) transita com muita propriedade entre termos oriundos da filosofia moderna e contemporânea e as práticas rotineiras da pós-modernidade como no caso da chamada gamificação. O jogo que, em geral, motiva os participantes com seu sistema de recompensas produtor de sensações imediatas de êxito é também ferramenta de exploração na psicopolítica. A comunicação social se manifesta na carência gramatical do Twitter, no apelo afetivo do like e na alienação promovida pelos influencers.
O filósofo sul-coreano aponta possíveis alternativas a esse modus operandi neoliberal ao sugerir que a verdadeira felicidade caminha ao lado da ausência de sentido e desvia da necessidade do trabalho, do desempenho e da finalidade, recuperando assim o seu potencial emancipatório. Segundo Han (p. 75), nosso futuro dependerá de sermos capazes do uso do inutilizável, para além da produção, reorganizando nossos investimentos libidinais para que não mergulhemos, por exemplo, na “loucura cor-de-rosa” – expressão tão bem utilizada por James Hillman[2].
Chama a atenção o quanto Han (p. 78-80) insiste na comparação entre o panóptico de Bentham e aquilo que poderia ser entendido como o “panóptico digital” da psicopolítica, tornando esse tema recorrente em vários capítulos. Para ele, enquanto o panóptico benthaminiano apresenta pontos cegos nos quais os pensamentos e os desejos secretos dos internos não são percebidos, os big data – enquanto instrumentos da psicopolítica – permitem uma vigilância “aperspectivista” que alcança a psique, livre das limitações de perspectiva e dos pontos cegos da vigilância analógica. O dataísmo – termo emprestado por David Brooks – se apresenta como uma espécie de “segundo iluminismo” onde os números e os dados substituem a Psicologia e outras disciplinas do comportamento humano. É o totalitarismo digital que renuncia o nexo de sentido através da eliminação da narração.
Assim, ferramentas e técnicas como big data e data mining se tornam base de campanhas políticas e permitem visão completa dos eleitores. Por meio do micro-targeting pode-se personalizar uma estratégia de campanha, abordando eleitor a eleitor e os influenciando. Cidadão e consumidor se assemelham cada vez mais para muito além do censo demográfico. Prática da biopolítica, a psicopolítica digital intervém nos processos psíquicos talvez mais rapidamente do que o livre arbítrio, representando assim o fim da liberdade. Para o filósofo, o data mining e os big data revelam “um campo de ação estruturado de maneira inconsciente” e tornariam visíveis “microações que escapariam à consciência” (p. 89).
Han assevera: “Os big data talvez tornem legíveis aqueles nossos desejos dos quais nós mesmos não estamos totalmente conscientes” (p. 88). Sendo assim, não é difícil imaginar o poder dessa ferramenta quando utilizada pelo capital. Desvendar padrões de consumo sem que o sujeito envolvido saiba que está sendo “investigado” é a materialização de um ideal há muito tempo sonhado pela indústria de consumo.
Com efeito, essa arma torna-se ainda mais eficaz na medida em que ela atua na carência das narrações. Ou seja, o big data trabalha por adição, por correlação não causal e, se por um lado não geram narração, por outro permitem a ausência de esquecimento. “A memória humana é uma narração”, afirma Han (p. 92) e, portanto, dinâmica, permitindo lacunas, insights, esquecimentos, confabulações, criptomnésias e várias outras alterações quantitativas e qualitativas estudadas pela Psicologia e áreas afins. Os silogismos são necessários para o processo de conhecimento do sujeito sobre si mesmo e não podem ser substituídos por adições sem narrações. Desse modo, concluímos, assim como o filósofo, que a eficiência da ditadura digital reside nesse movimento para que o sujeito saiba muito pouco sobre ele mesmo.
Ao final do mergulho crítico proposto por Han, retornamos ao ponto de partida: afinal, de que liberdade falamos no neoliberalismo? O filósofo utiliza alguns últimos argumentos para comprovar a hipótese de que, ao mesmo tempo em que nos vemos livres das imposições alheias, nos afogamos nas próprias imposições afetadas pelos mecanismos de controle psicológico.
E a saída para tudo isso? O idiotismo, assevera Byung-Chul Han (p. 109). Só assim continuaremos a produzir singularidades. É o idiotismo que move a filosofia desde sempre, seja na produção de uma nova linguagem, um novo pensamento… É esse idiotismo que, de alguma forma, leva o sujeito a buscar um processo psicoterapêutico que não lhe diga o que é preciso fazer, mas que possibilite construções e reconstruções a partir de uma reflexão. O idiotismo representa, definitivamente, uma prática de liberdade (p. 111).
Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder é um livro que desestabiliza toda e qualquer pretensão pós-moderna de alívio do mal-estar. Um convite à reflexão do mundo em que vivemos e cujas engrenagens ajudamos a construir diariamente. E, acima de tudo, uma amostra convincente de que a psicologia nasceu e permanece como filha da filosofia.
[1] O Conselho Editorial recebeu esta resenha e, mesmo sabendo que ela não trata do tema deste número do CadernoS de PsicologiaS, optou por inseri-la neste número uma vez que o tema do livro nos dá subsídios para compreender a realidade social que vivemos e que, de uma certa forma, circunscreve este momento que vivemos.
[2] Importante psicólogo junguiano que trabalha a ideia de “loucura cor-de-rosa” como uma representação da imaginação presente de maneira intensa na relação do homem com a sexualidade através da pornografia.
Han, B-C. (2018). Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. elo Horizonte, MG: ÂYINÉ.
APA – Severo, A. C., Saling, B. L., Vieira, F. de M., Pimenta, F. C., Camargo, M. E. da R., & Raymundo, Y. M. (2020). Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder de B-C Han – Resenha. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/psicopolitica-o-neoliberalismo-e-as-novas-tecnicas-de-poder.
ABNT – SEVERO, A. C. et al. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder de B-C Han – Resenha. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/psicopolitica-o-neoliberalismo-e-as-novas-tecnicas-de-poder>. Acesso em: __/__/____.