Revista CadernoS de PsicologiaS

Quando o mundo se tornou mundo: questionamento ou afirmação?

Élcio Vicente Alves Achando
Acadêmico de Psicologia na Faculdade Anhanguera Bandeirantes
E-mail: esorensilva@gmail.com
Luana de Oliveira Fonseca
(CRP-08/22895)
Docente na Faculdade Anhanguera Bandeirantes
E-mail: l.oliveira@kroton.com.br

#Estilhaços

Estou reescrevendo novamente esse texto, pois como um universitário, eu estava me prendendo as normativas de um trabalho acadêmico. E, ao ler, acredito que esse estilhaço merece mais do que uma norma para o compor. Já que, em seu decorrer, pretendo mostrar uma vivência, que já é exposta, muitas vezes contra sua vontade, a certo padrão.

O ato de acordar e perceber que o mundo não é tão nosso quanto dos outros, eis o fator determinante para essa escrita. O modo de viver, em geral, não é gerenciado por ser acolhedor, a história sobre os manicômios é uma das provas disso. Estereótipos, estigmas, preconceitos, são características de como somos vistos, e contrapõem a nossa primeira visão sobre o existir, o viver.

Um dos meus grandes questionamentos, desde criança, sempre foi o motivo das pessoas praticarem um agir e proferirem falas carregadas de opiniões próprias acerca do outro e seu modo de viver. Pois, o que levava alguém a se julgar como certo e o outro estar errado, já que, ambos estavam vivendo no mesmo mundo, entretanto, pareciam respirar um ar diferente?

Se obtém como fato, a realidade vivida dentro da história dos manicômios, mais especificamente do Hospital Colônia de Barbacena, em que 70% das pessoas que estavam lá, não tinham um quadro de doença mental, mas que viviam de forma contrária do modo de viver esperado como certo, se tornando assim, um problema para as pessoas que tinham poder. Indivíduos que eram: homossexuais, mães solteiras, alcoolistas, negros, entre outros, considerados ameaça a ordem pública, e isso resultou que o local se tornasse destino para livrar a sociedade desses indivíduos rejeitados, se desfazendo deles (Arbex, 2013).

Nascemos e somos postos à certas crenças, pesares e pensamentos, já pré-moldados de como se deve ou não viver. Porém, essa regra restrita, com um poder absoluto e irredutível, se torna problemática, heteronormativa e elitista. E contrapondo a esse padrão existente, surge em meio a isso, os movimentos sociais, sendo alguns, vinculados à história da psicologia.

Os movimentos sociais não surgem do nada, pois acontecem quando um grupo de pessoas em conjunto age contra uma situação de injustiça, visando mudá-la por meio de mobilizações coletivas que procuram reivindicar e exigir direitos, expressando um problema que não é visto por todos e que precisa ser visualizado por mais gente (Silva & Camurça, 2010).

Exemplos de movimentos sociais como, a Marcha das Vadias, pelo direito das mulheres sobre seus corpos, pois no mundo existente, patriarcal e baseado em desigualdade de gênero, ocorre a necessidade de manifestação por esse direito. Assim como a Marcha Zumbi, pela população negra, em um mundo em que há discriminação pela cor de pele, baseado ainda em paradigmas coloniais e eurocentristas. As Paradas do Orgulho LGBT, sobre a visibilidade em relação à sexualidade, contrapondo a heteronormatividade estipulada como padrão. Todos esses movimentos, vindo de pessoas que lutam por direitos de igualdade a respeito de suas vivências, demonstram a incompreensão, que quando criança eu tinha, ao questionar o motivo de se existir preconceito. 

Também destaco a falta de representatividade acerca desses grupos minoritários, em mídias, como

filmes, novelas, revistas, programas de televisão, que constituem uma incógnita em cima da formação do entendimento que contraria o padrão de viver imposto dentro do mundo, esse relativo a determinado espaço numa sociedade regida de uma vivência específica sobre determinado indivíduo, em que o enredo de uma produção audiovisual exposto na mídia, pode refletir na vida do espectador. Uma vez, em meio a roda de conversa entre conhecidos, uns mais velhos, estes que reproduziram piadas e menções de programas humorísticos antigos, completavam suas falas com: hoje em dia tudo é racismo e homofobia, antes não tinha nada disso. Porém, sempre existiu racismo e homofobia, o que difere agora é a visibilidade que isso tem hoje em dia. E durante os anos, houve essa percepção em filmes, tanto que a própria Disney começou a produzir conteúdo com mais representatividade. Houve uma época, em que um vídeo de uma garotinha reagindo toda alegre ao ver que a personagem principal do filme Moana (2016)1 era parecida com ela, repercutiu na internet. Em contraposição, temos o live-action de A Pequena Sereia (2023)2, que gerou revolta, pois a atriz escolhida era negra. Então, sempre houve discriminação, tanto antes, quanto agora.

Nesse caminho, observo que durante a história da psicologia, também houve discriminação, mais especificamente sobre a homossexualidade. Por exemplo, em 1952, nos Estados Unidos, na primeira versão do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM I) o termo “homossexualismo” adentra a patologização da homossexualidade. Em 1968, conforme a publicação da sua segunda versão (DSM II) a homossexualidade é mantida como doença mental. Apenas em 1987, nos Estados Unidos, é que foi retirado o diagnóstico de homossexualidade dentro do DSM III (Macedo, 2018). 

No Brasil, a resolução do Conselho Federal de Psicologia n° 001/99 DE 22 DE MARÇO DE 1999 em que:

Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual; CONSIDERANDO que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade; que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão (CFP, 1999, p.2).

Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual; CONSIDERANDO que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade; que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão (CFP, 1999, p.2).

Este atual parágrafo é especificamente escrito pela visão de um dos autores dessa escrita, esse que é LGBT, graduando de psicologia e, nascido em 1999, no mesmo ano em que essa resolução foi estabelecida. Quando eu nasci, o mundo já era mundo. Já existiam pessoas sendo pessoas. O meu modo de pensar quando criança, o questionamento inocente sobre o agir das pessoas em relação às outras, era recente, assim como a luta por direitos. A ideia de considerar patológico a homossexualidade, ajudou a reforçar o estigma e o preconceito. Lembro que, na minha infância, a maioria das representações acerca do mundo LGBT, as poucas que tinham, eram carregadas de estigma, e muitas das vezes, algumas representações dentro da mídia não possuíam finais felizes, não como as representações da vivência heteronormativa.

Atualmente, existem produções que se enquadram na categoria LGBT, filmes, séries e demais conteúdos, que relatam uma visão melhor do que era relatado antes. Hoje em dia, o público possui maior representatividade, mais expectativas em cima de suas vidas. Um grande exemplo, está na franquia de jogos The Sims3, em que o primeiro lançado em 2000, e o The Sims 44, o atual, possuem uma dinâmica evolutiva enorme, pois como o jogo é um simulador de vida, em que se cria um personagem e seu mundo para viver, ao longo dos anos ele foi se adaptando ao público, esse que possui uma visão mais aberta que as versões anteriores, uma visão de mundo mais consciente ao pensar sobre discriminação. Vendo que, atualmente, o The Sims 4 possui uma criação de personagens mais diversificado, com a possibilidade de criar o personagem sem limites de gêneros estabelecidos, sendo que as roupas e o tipo físico, podem ser utilizados tanto para personagens masculinos e femininos. Logo, existe a possibilidade, em um jogo de simulação de vida, de abranger a jogabilidade para criar um mundo conforme a visão do jogador.

Na faculdade, em uma das aulas, em que o tema era estigma, preconceito e discriminação, mostrando a importância que a psicologia, hoje em dia, trata sobre a vida do indivíduo e o olhar das pessoas sobre os outros, pôde-se observar que há alunos que carregam os estereótipos vindo do mundo atual. Coloca-se em perspectiva o local em que se encontra a instituição de ensino superior, na cidade de Bandeirantes – Paraná, sendo essa, do interior e com uma população aproximada de 31.273 pessoas (IBGE 2022). Uma cidade que tem como grande ponto forte o turismo religioso, pois possui o Santuário de São Miguel Arcanjo, o maior santuário do anjo no mundo, e tendo o agronegócio como atividade socioeconômica (Prefeitura Municipal de Bandeirantes, 2024). Então há uma tendência de se ter um conservadorismo em meio ao tradicionalismo nessa cidade. Essas informações não corroboram em criticas, mas sim em um método comparativo, para avaliar como um local especifico, como uma cidade pequena, pode espelhar os valores repercutidos — muitos desses podendo ser discriminatórios — dentro da sociedade, pois, querendo ou não, estamos inseridos em um mundo heteronormativo e regido por papéis sociais, esses que definem um padrão de como viver. Então, quando o mundo se tornou mundo?

 Ao decorrer da minha formação, a psicologia ensinada pelos meus professores, demonstra um perfil de inclusão, um que evidencia a psicologia não tolerando qualquer tipo de discriminação. Quando cheguei na metade da graduação, em uma aula foi pedido para escrever uma carta de como contávamos a alguém sobre o que é psicologia. Cito uma frase que escrevi, incluindo também a terapia como definição: ela lhe dá opções que você nem sabia que tinha. Ela lhe mostra respostas de perguntas que você nem sabia que tinha. Um questionamento em busca de respostas que você possivelmente já tem. É essa visão de mundo ideal, um que lhe dá opções que você nem sabia que tinha. Isso que é visibilidade e representatividade. Quando o mundo se torna mundo.

Notas

[1] Moana – Um Mar de Aventuras – é uma animação de longa metragem, lançado em 2016, produzida pela Disney e dirigido por John Musker, Ron Clements (Adoro Cinema, 2016); 

[2] A Pequena Sereia, lançado em 2023, é um remake live action do clássico desenho animado A Pequena Sereia, de 1989, da Disney, sendo esse atual, dirigido por Rob Marshall (Adoro Cinema, 2023);

[3] The Sims é um jogo de simulação de vida, lançado em 4 de fevereiro de 2000, criado pelo designer de jogos Will Wright, produzido pela Maxis e distribuído pela Eletronic Arts (Sims Fandom, 2024); 

[4] The Sims 4, é o atual jogo de simulador de vida da franquia The Sims, lançado em midia digital em 4 de setembro de 2014, desenvolvido pela Maxis e The Sims Studio, junto com a Eletronic Arts (Sims Fandom, 2024);

[5] De acordo com o estilo APA (American Psychological Association)

Referências5

Adoro Cinema. (2023). A Pequena Sereia. Recuperado de: https://www.adorocinema.com/filmes/filme-247753/creditos/

Adoro Cinema. (2016). Moana – Um Mar de Aventuras. Recuperado de https://www.adorocinema.com/filmes/filme-225958/ 

Arbex, D. (2013). Holocausto brasileiro: vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial.

Conselho Federal de Psicologia (CFP). (1999). Resolução CFP N° 001/99, de 22 de março de 1999. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Brasília, DF: CFP.

IBGE. (2022). Bandeirantes (PR) | Cidades e Estados | IBGE. Recuperado de: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/pr/bandeirantes.html

Macedo, C. (2018). Linha do Tempo – CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos. Recuperado de https://clam.org.br/campanhas-e-direitos/linha-do-tempo/20533/ 

Prefeitura Municipal de Bandeirantes. (2024).  BANDEIRANTES: “UM LUGAR DE FÉ, NATUREZA E TRADIÇÕES” Recuperado de https://www.bandeirantes.pr.gov.br/pagina/7/turismo 

Silva, C., & Camurça, S. (2010). Feminismo e movimentos de mulheres. (Série Mulheres em Movimento, no 1). Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia. Recuperado de https://biblioteca.clacso.edu.ar/Brasil/sos-corpo/20170920041351/pdf_950.pdf

Sims Fandom. (2024). The Sims. Recuperado de https://sims.fandom.com/pt-br/wiki/The_Sims

‌Sims Fandom. (2024). The Sims 4. Recuperado de https://sims.fandom.com/pt-br/wiki/The_Sims_4 

Como citar esse texto

ABNT — ACHANDO, É. V. A.; FONSECA, L. de O. Quando o mundo se tornou mundo: questionamento ou afirmação? CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/quando-o-mundo-se-tornou-mundo-questionamento-ou-afirmacao/ . Acesso em: __/__/___.

APA — Achando, É. V. A., & Fonseca, L. de O. (2024). Quando o mundo se tornou mundo: questionamento ou afirmação? CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/quando-o-mundo-se-tornou-mundo-questionamento-ou-afirmacao/