Nossos passos vêm de longe!
Essa afirmação ilustra muito o que pretendo abordar nesta resenha. Aliás, não irei resenhar sua obra fruto dos estudos de sua dissertação intitulada Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo, desenvolvida entre 1941 e 1944. Mas nos próximos parágrafos pretendo demarcar uma história que por décadas pouco se fez presente na historiografia dos estudos da Psicologia e Psicanálise, isto é, contarei brevemente quem foi Virgínia Leone Bicudo, e porque nossos passos vêm de longe.
Virgínia foi uma pioneira nos estudos sobre as relações raciais no contexto brasileiro, sobretudo, nos primórdios da institucionalização universitária das ciências sociais no país. A autora, realizou diversas pesquisas sobre as relações raciais, a partir das interfaces entre sociologia, antropologia, psicologia social e psicanálise, sendo ainda uma das protagonistas na produção intelectual, atuação profissional e difusão da psicanálise.
Dia 21 de novembro de 1910 nasce Virgínia Leone Bicudo. Neta de escravos e imigrantes italianos, ao longo de seus 93 anos de vida Virgínia nasceu e viveu em São Paulo toda sua infância e adolescência, sendo sua mãe imigrante italiana e seu pai descendente de escravos. Giovanna Leone uma imigrante italiana e Theofilo Júlio Bicudo.
Theofilo era um jovem bastante ambicioso e que desejava ingressar na Faculdade de Medicina de São Paulo, contudo, foi obstado por um professor que acreditava que aquele espaço não seria um local para negros/as (GOMES, 2014).
Virgínia, Leone e Bicudo três nomes que circulavam pelo mesmo espaço, no entanto, exercendo papéis distintos: o escravo, o imigrante o dono da fazenda. Virgínia Leone Bicudo recebeu o prenome da avó e os sobrenomes da mãe e do padrinho do pai.
A menina Bicudo aprendeu a gostar de música com o piano que o pai fez questão de comprar para os filhos. Theóphilo era um “preto metido” – tornou-se carteiro e gerente de uma agência dos correios – com a ajuda de Bento Bicudo que lhe conseguiu uma colocação. Vestia-se bem. Tinha orgulho de si e da família, era um homem correto, mas com um sonho frustrado: a medicina. Mesmo com uma das melhores notas do Ginásio do Estado, foi impedido por um professor de entrar na faculdade porque aquele não era um lugar para pretos. Na infância, Virgínia, dizia ser tratada como uma “negrinha pobre” e agredida constantemente pelos colegas da escola que a seguiam aos brados de “negrinha, negrinha, negrinha” (Teperman, 2011). Apesar disso, gostava de estudar e era aplicada explica que isso era uma recomendação de seus pais “para evitar ser prejudicada e dominada pela expectativa da rejeição… por causa da cor da pele” (Haudenschild, s/d). Em 1930, no 5º. ano Mixto, ela se forma pela Escola Normal Caetano de Campos, onde pode ter acesso à oportunidades de estudos de uma classe social distinta da sua (Haudenschild, s/d) (GOMES, 2014, p. 48/49).
Virgínia Leone Bicudo foi a única mulher a obter o bacharelo em Ciências Políticas e Sociais em 1938, na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP). Acompanhou um curso de Lèvi-Strauss, e segundo depoimento, a socióloga e psicanalista diz ter optado por este curso para compreender melhor o fenômeno do preconceito racial: “Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de sociologia porque se o problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito…” (BICUDO, 1994).
Segundo Gomes (2014) posteriormente Bicudo desistiria da profissão de socióloga e se tornaria psicanalista, uma vez que, segundo Bicudo buscou a sociologia para tentar compreender o seu sofrimento, ou seja, o que e porque sentia tanto sofrimento.
Então eu pensei que a sociologia iria me esclarecer sobre os motivos do meu sofrimento. …e estando no curso, eu estava no segundo ano, pela primeira vez em minha vida eu ouvi falar de Freud, em sublimação e fatores internos. Então eu disse, bem, não é sociologia que eu tenho que estudar, eu tenho que estudar é psicanálise e Freud. (Depoimento de Virgínia Leone Bicudo ao Projeto Memória da Psicanálise, 1994).
Em 1945 Virgínia defendeu a primeira dissertação de mestrado sobre a questão racial no Brasil, sob a orientação de Donald Pierson, intitulada “Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”.
Além da formação em Ciências Sociais e Psicanálise, Virgínia fez o curso de educação sanitária no Instituto de Higiene de São Paulo em 1932. Após o curso tornou-se funcionária da Diretoria do Serviço de Saúde Escolar do Departamento de Educação, onde tinha como atribuição dar aulas de higiene em escolas do Estado de São Paulo. Em 1945, tornou-se professora assistente da cadeira de higiene mental da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
Em 1949, Virgínia foi convidada para integrar a equipe do Projeto Unesco em São Paulo, que visava realizar diversas pesquisas sobre as relações raciais. O projeto era coordenado por Roger Bastide e Florestan Fernandes (BALIEIRO, 2016).
A profissão de educadora sanitária além de dar independência financeira à Bicudo, fez com que ela começasse a circular ainda mais pela cidade. Se como professora ela iria ficar restrita à circulação no espaço de um determinado ambiente escolar, ao optar pelo trabalho como educadora sanitária, ela estava escolhendo circular pela cidade de modo distinto (GOMES, 2014).
No entanto, Virgínia para além do pioneirismo passou por diversos ataques e resistências, posto que ao adentrar em um espaço branco, masculinizado, burguês, como por exemplo, o espaço da academia e o meio psicanalítico, colocava as mulheres na discussão sobre sexualidade, o que era um tabu numa sociedade conservadora como a nossa. Mas falar de sexualidade durante o regime varguista também era bastante ousado, principalmente para uma mulher negra.
Cabe pontuar que nesta época a Psicanálise não estava totalmente institucionalizada, consequentemente, argumentos contrários eram recorrentes, principalmente por parte de médicos da Faculdade de Medicina de São Paulo em sua totalidade brancos. Para Virgínia isso se tornava mais intenso e difícil, posto que, Virgínia se tornou a primeira Psicanalista não médica no Brasil.
De acordo com Gomes (2014) isso lhe valeu a acusação de charlatã em grandes eventos e em pequenos folhetos que eram distribuídos no centro de São Paulo com os dizeres: “Se eres neurótico e queres se tornar psicótico, procura a doutora Virgínia Bicudo. Se trate com a doutora Virgínia Bicudo!” (BICUDO, 1994).
[…] eu estava sentada e era a hora da Higiene Mental apresentar. Eu estava sentada e os médicos, todos de pé, todos gritando: “Absurdo! Psicanalistas não médicos!” Foi horrível! Olha que eu quase me suicidei por isso. Você ouvir outras pessoas dizendo: “Você é charlatã!” Ser chamada de charlatã publicamente! Ah! Você não fica de pé! Você vai para casa e quer morrer! (BICUDO, 1994).
De acordo com Balieiro (2016) nas décadas seguintes, Virgínia Bicudo continuou com o trabalho de divulgação e institucionalização da psicanálise no Brasil. Unindo-se ao crescente interesse na divulgação de atividades das instituições científicas por intermédio dos meios de comunicação, Virgínia, que tem uma grande facilidade de se expressar e comunicar com paixão o que pensa e sabe, se dedica a transmitir conhecimentos básicos que possam auxiliar pais e educadores na compreensão das necessidades emocionais da criança em seu desenvolvimento através de um programa de rádio que comanda Nosso Mundo Mental, na Rádio Excelsior, onde orientava jovens casais, famílias e pais no reconhecimento e tratamento de suas neuroses. Seu programa de rádio, em formato de novela, era um meio de expandir o conhecimento sobre a psicanálise, mas também de uma determinada psicanálise, civilizatória, da qual não se pode extirpar um caráter político. Seja pela amplitude das pessoas que poderia alcançar através desse mecanismo, seja pela possibilidade de servir como “guia” de uma moderna conduta familiar, sexual, social, centrada no indivíduo que emerge dessa nova ordem (GOMES, 2014).
Com a mesma intenção publica textos no jornal Folha da Manhã. Em 1955, baseados nessa experiência, sai seu livro, Nosso mundo mental. Em 1954, Virgínia foi contratada pelo Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
Pouco depois, em 1955, iniciou uma temporada de estudos psicanalíticos em Londres. Além dos cursos na Tavistock Clinic e da formação na British Society, Virgínia tem contato e estuda com os analistas mais significativos da época: Melanie Klein, Ernest Jones, Winnicott, Bion e Anna Freud entre outros. Mesmo durante o seu período londrino, não diminui a sua disposição de divulgar a psicanálise: transmite para o Brasil, pela BBC, algumas palestras. Permanece estudando na Inglaterra até o final de 1959 quando retorna ao Brasil. Aqui retoma sua atividade clínica iniciada em 1944 (BALIEIRO, 2016).
Virgínia para de trabalhar em Brasília somente em 1993, mas continuou seu trabalho clínico até o ano 2000, sendo assim, o empreendendo até o final de sua vida várias iniciativas destinadas à difusão e ao ensino da psicanálise.
Bicudo além de ser a primeira mulher a fazer análise na América Latina, a primeira estudiosa a redigir uma tese sobre relações raciais no Brasil, foi a primeira psicanalista não médica no país. Também integrou o primeiro Conselho Federal de Psicologia, sendo a ata de sua posse datada de dezembro de 1973 assinando como representante da sociedade brasileira de Psicanálise de São Paulo junto de Armando Ferrari.
Na década de 1970, Virgínia embarcou no projeto de Brasília e passou a dividir-se por mais de 20 anos entre as duas cidades, trabalhando em São Paulo e, paralelamente, lecionando na Universidade Nacional de Brasília, onde, com outros colegas paulistas, constituiu a sede de Brasília do Instituto de Psicanálise da SBPSB, que iria gerar, mais tarde, a Sociedade de Psicanálise de Brasília.
Como dito anteriormente, Virgínia parou de trabalhar em Brasília somente em 1993, mas continuou seu trabalho clínico até o ano 2000, empreendendo, até o final de sua vida, várias iniciativas destinadas à difusão e ao ensino da psicanálise. Nas palavras de Gomes, “ela não teve uma morte branca, ela morreu como uma mulher negra” (2014).
Segundo Moretzsohn (2013) Virgínia morre em 2003, três anos após se afastar do trabalho clínico. Em sua mesa havia uma carta escrita ainda em 1983 sobre o destino de seu corpo depois da morte, ou seja, uma última palavra para os que ficam ou, mesmo, para os que ainda vão chegar:
“[…] solicito fazer cumprir meu desejo de ser incinerada em lugar de ser enterrada. O corpo sem vida retorna ao mundo inorgânico e em vez de tomar espaço em cemitério é mais inteligente que seja transformado em um punhado de cinzas atirado à terra. Sejamos razoáveis. Estaremos sempre juntos! Somos da natureza.
São Paulo, 22 de dezembro, 1983″.
Referências
Balieiro, Cristina (2016). Mulheres marcantes: Virgínia Leone Bicudo (1910/2003), Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade.
Bicudo, Virgínia Leone (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Edição organizada por Marcos Chor Maio (Org). São Paulo: Editora Sociologia e Política, 2010.
Bicudo, Virgínia Leone (1994). Serpa, A. Meio Século de História. 1944-1994. Revista Brasileira de Psicanálise.
Gomes, Janaina Damasceno (2014). Os segredos de Virgínia: Estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Da Universidade de São Paulo, 2013.
Moretzsohn, Maria Angela Gomes (2013). Uma história brasileira. J. psicanal., São Paulo, 2013.
ABNT — Navasconi, P. V. P. Quem foi Virgínia Leone Bicudo? CadernoS de PsicologiaS, n. 5, 2023. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/quem-foi-virginia-leone-bicudo. Acesso em: __/__/_____
APA — NAVASCONI, P. V. P. (2023). Quem foi Virgínia Leone Bicudo? CadernoS de PsicologiaS, 5. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/quem-foi-virginia-leone-bicudo