Resumo: O presente trabalho busca apresentar um projeto de redução de danos que será implementado na cidade de Assis – SP. Além de trazer a discussão epistemológica acerca da temática da redução de danos no Brasil e a compreensão do cuidado em saúde enquanto construção de autonomia e garantia de direitos, justamente porque, para que esses direitos sejam garantidos, é necessário desmantelar a necropolítica imposta pelo Estado, que dificulta a sobrevivência desses sujeitos. Redução de danos é produção de vida, vida com saúde e acesso. Implementar o projeto querer-viver-liberdade, é possibilitar existências no território de Assis-SP. Palavras chaves: Necropolítica, redução de danos e saúde.
QUERER-VIVER-LIBERDADE: HARM REDUCTION PROGRAM IN THE CITY OF ASSIS-SP
Abstract: This work seeks to present a prototype of a harm reduction project that will be implemented in the city of Assis – SP. To this end, the study provides an epistemological discussion on harm reduction in Brazil and state health care as a construction of autonomy and guarantee of human rights. Therefore, it is necessary to dismantle the necropolitics imposed by the State, which defines who is disposable and who is not. Since harm reduction is the production of life with health and access to health care, implementing the “querer-viver-liberdade” project means enabling existence in Assis-SP. Keywords: Necropolitics, harm reduction and health.
QUIERO-VIVIR-LIBERTAD: PROGRAMA DE REDUCCIÓN DE DAÑOS EN LA CIUDAD DE ASSIS-SP
Resumen: El presente trabajo busca presentar un prototipo de un proyecto de reducción de daños que será implementado en la ciudad de Assis – SP. Además, plantea la discusión epistemológica sobre la temática de la reducción de daños en Brasil y la comprensión del cuidado en salud como construcción de autonomía y garantía de derechos. Precisamente porque, para garantizar estos derechos, es necesario desmantelar la necropolítica impuesta por el Estado, que dificulta la supervivencia de estos sujetos. La reducción de daños es la producción de la vida, una vida con salud y acceso. Implementar el proyecto “querer-vivir-libertad” es posibilitar existencias en el territorio de Assis-SP. Palabras clave: Necropolítica, reducción de daños y salud.
Introdução
A temática das drogas no que diz respeito às políticas públicas de saúde são historicamente recentes, o que levou o Estado a assumir a responsabilidade pelos espaços de cuidados foram outros elementos, sem ser propriamente a promoção de saúde ou preocupação com as pessoas que fazem o uso abusivo de drogas. Um exemplo disso, foi a inserção de práticas de cuidado para diminuir a transmissão do HIV/Aids, que ocorria através da utilização das drogas injetáveis. Logo, é perceptível que as discussões acerca das drogas, não raro, encontram-se centralizadas em vieses morais e de controle. Desta forma, entendemos que a utilização de drogas na sociedade não deve ser vista como um fator isolado, e consequentemente, vinculado à vontade individual de cada sujeito. Para além disso, é uma produção histórica e social que é alimentada por ideais e valores dominantes.
Os conceitos de psicotrópicos legais e ilegais são construídos socialmente a partir dos interesses políticos e econômicos. Observa-se essa dialética por meio da implementação da Política Nacional sobre Drogas de 2019 que revogou a Política Nacional Antidrogas de 2002, evidenciando assim, os interesses políticos acerca do assunto. A nova política centraliza o cuidado na lógica de abstinência e fortalece as comunidades terapêuticas, afastando as práticas de redução de danos e contribuindo para uma dinâmica proibicionista e punitivista.
Deste modo, propor uma estratégia de redução de danos, é propor um olhar para a vida, é permitir conhecer o emaranhado de existências que trouxe o sujeito até aquele determinado momento e, assim, em conjunto pensar e construir um trajeto de retomada de autonomia da própria vida. Sendo com esse ideal que surge o projeto de intervenção QUERER-VIVER-LIBERDADE, na busca de uma construção de possibilidades de vida para essa população acometida por uso e abuso de substâncias da cidade de Assis-SP a partir da dinâmica de Promoção, Prevenção e Recuperação.
Contudo, não é possível falar sobre saúde que faz uso abusivo de drogas, sem falar de redução de danos, do mesmo modo que não há como compreender os ideais da redução de danos, antes de compreender a falácia das guerras às drogas que dá aval para o extermínio da juventude preta e que se articula por meio da necropolítica, que se caracteriza pelo poder que o estado possui de produzir corpos matáveis, “a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é. (MBEMBE, 2020, p.41).
A partir desse viés, é urgente pensar como a necropolítica se estrutura dentro da saúde pública, se existem corpos autorizados a morrer pelo poder do estado, corpos deixados à mercê para a morte, é possível o cuidado chegar até eles? E que tipo de cuidado se tem disponível para esses corpos? Sentenças intermináveis em hospitais psiquiátricos, internações compulsórias, comunidades terapêuticas, silêncio e invisibilidade, culpabilização.
A redução de danos tece conexões com os movimentos antirracistas, antiproibicionistas, antimanicomiais, e por sua vez, permite a produção de uma vida possível de viver, que compreende um cuidado em liberdade, que visualiza o sujeito em sua totalidade, abarca as possibilidades de sobrevivência, os territórios a serem alcançados, a autonomia, tanto a condição de poder escolher, quanto a produção de novas escolhas possíveis de serem ácfeitas, busca romper com a necropolítica, pensa produção de saúde, qualidade de vida, uma redução dos danos causados pelo uso abusivo de drogas, mas também aos dos danos causados pela necropolítica.
Nesta perspectiva, pretende-se apresentar uma proposta de trabalho que está sendo implementada no segundo semestre de 2023, no qual, será realizada a partir de três estágios: curto, médio e longo prazo. A primeira fase consiste na formação dos profissionais de saúde da cidade e na informatização da população, por meio de cursos e produção de cartilhas. A etapa seguinte busca realizar o mapeamento dessa população, bem como compreender as demandas desses sujeitos e do território em que estão inseridos, construindo a partir disso estratégias que articulem com os serviços de saúde, de assistência social e educação. Pretende-se nessa segunda fase a aplicação de grupos terapêuticos, distribuição de kit de redução de danos [1] construção de vínculos com a comunidade, conscientização do próprio consumo.
Além disso, compreendendo que a problemática das drogas tem seus ecos em diversas desigualdades sociais e de opressões, a redução de danos parte de uma lógica integracionista, no sentido de também ter como enfoque de atuação a soberania alimentar, a moradia digna, condições de trabalho ideais, lazer e acesso à cultura. Nesse sentido, a última etapa almeja a produção de um centro de convivência.
Breves Reflexões
No Brasil, a primeira intervenção em relação ao uso de drogas surge no campo da justiça e da segurança pública, por meio de uma lógica proibicionista e repressora. Os conceitos de psicotrópicos legais e ilegais são construídos socialmente a partir dos interesses políticos e econômicos. Não necessariamente a nocividade e mortalidade da substância definirá a legalidade ou ilegalidade, as bebidas alcoólicas exemplificam bem esse cenário. “O discurso oficial de proteção à saúde, é utilizado como dispositivo de controle social” (JÚNIOR, 2016), a proibição do uso de determinadas substâncias tem como produto a criminalização de determinados corpos. As pessoas usam drogas e nem todos os usos são prejudiciais, a questão a ser pensada é o que pode ser feito para reduzir os possíveis danos causados para quem faz uso abusivo.
No entanto, “tendo enfoque na repressão em detrimento da prevenção” (BOARINI, 2003, n 585), durante muitos anos, o que na época era chamado de toxicomania, foi considerado uma doença que não podia ser tratada em casa, por isso pessoas que faziam uso abusivo de drogas eram internadas em hospitais psiquiátricos. Percebe-se então, uma reprodução da dinâmica punitiva, em diversos momentos, inclusive até mesmo depois da compreensão que era uma problemática da saúde pública, nos anos 1990 com a epidemia da AIDS. Quando se pensa o cuidado para as pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas ainda há estigmas, preconceitos e violências presentes que prejudicam a eficácia da promoção, prevenção e recuperação da saúde desses sujeitos.
Todavia, não é possível falar sobre a saúde da que faz uso abusivo de drogas sem falar de redução de danos, do mesmo modo que não há como compreender os ideais da redução de danos, antes de compreender a falácia das guerras às drogas que dá aval para o extermínio da juventude preta e que se articula por meio da necropolítica. Política essa, que se caracteriza pelo poder que o estado possui de produzir corpos matáveis, “a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é “descartável e quem não é.” (MBEMBE, 2020, p.41).
O Brasil se apoia nas lógicas proibicionistas, um instrumento do necropoder, que cria e sustenta as condições para esse extermínio. Não há como desassociar essa suposta guerra às drogas, do histórico colonial do país, do surgimento das regiões periféricas, do racismo enquanto categoria fundante. A guerra às drogas é um instrumento do necropoder para instaurar a política de morte, criando assim um inimigo ficcional e esse inimigo não é a droga, é o usuário dessa droga. Logo, essa guerra não é contra as drogas é uma guerra posta contra a negritude, é uma ferramenta de extermínio.
A partir desse viés, é urgente pensar como essa política se estrutura dentro da saúde pública, se existem corpos autorizados a morrer pelo poder do estado, corpos deixados à mercê para a morte, é possível o cuidado chegar até eles? E que tipo de cuidado se tem disponível para esses corpos? Sentenças intermináveis em hospitais psiquiátricos, internações compulsórias, comunidades terapêuticas, silêncio e invisibilidade, culpabilização.
Obviamente, a redução de danos tece conexões com os movimentos antirracistas, antiproibicionistas e antimanicomiais, permite a produção de uma vida possível de viver, que compreender um cuidado em liberdade, que visualiza o sujeito em sua totalidade, abarca as possibilidades de sobrevivência, os territórios a serem alcançados, a autonomia, tanto a condição de poder escolher, quanto a produção de novas escolhas possíveis de serem feitas, busca romper com a necropolítica, pensa produção de saúde, qualidade de vida, uma redução dos danos causados pelo uso abusivo de drogas, mas também dos danos causados pela necropolítica.
A redução de danos é considerada uma estratégia marginal em países proibicionistas que não consideram a pessoa que faz uso de drogas como cidadão de direitos, e dessa forma fica a questão: como construir políticas públicas efetivas quando não se considera cidadão a pessoa que irá se beneficiar dela?
Desse modo, os territórios são vivenciados como cena de guerra, com violências cotidianas, esses sujeitos vivem à margem, excluídos da sociedade, raramente acessam o sistema de saúde e quando tentam são estigmatizados e violentados. Se não são vistos, não são um problema, por isso, as políticas públicas criam mecanismos de afastamento dessas pessoas dos centros urbanos. A redução de danos produz escuta e possibilita o resgate da humanidade desses sujeitos. Não há como produzir cuidado sem visualizar o sujeito a partir de todos os atravessamentos que o compõem, não há como compreender a realidade de vida, a dinâmica com a droga, a história, o sofrimento presente, sem perceber que redução de danos só é possível de ser feita com um caráter interseccional. “Se não é possível livrar o mundo das drogas, é melhor aprender a conviver com elas e ensinar as pessoas a usarem essas substâncias com o máximo de segurança possível” (GORGULHO, 2004).
Por que instituir esse projeto?
Há poucos serviços que cuidam das pessoas em situação de uso abusivo de drogas em Assis e dentre esses poucos, a maioria são do terceiro setor, bem como comunidades terapêuticas, que atuam de maneira violenta, por uma lógica de abstinência e internação compulsória. Logo, percebe-se que não há uma lógica de redução de danos efetiva na cidade, pouco se pensa sobre esse assunto na saúde pública da cidade.
Paralelo a essa realidade, a inauguração do Caps AD e do consultório na rua para o final de 2023, e o trabalho que já começa a ser construído pelo Pop na rua, produz uma outra dinâmica para a cidade de Assis-SP. Esse cenário, produz o momento propício para a implementação do QUERER-VIVER-LIBERDADE: Programa de redução de danos na cidade. Com essas novas unidades de saúde sendo instituídas, a cidade tem o aparato estrutural para criar políticas de redução de danos eficazes e desenvolver um programa de qualidade e até de uma possibilidade muito palpável de se tornar uma cidade referência em relação ao cuidado das pessoas em uso abusivo de drogas. Mas obviamente, se faz urgente pensar, organizar e articular essas novas ferramentas pelos ideais da redução de danos.
Caracterização do público-alvo referente à política
Sabe-se que existe uma população adicta em Assis, porém não se tem conhecimento de fato da complexidade que atravessa esses sujeitos, não existe nenhum tipo de dado que exemplifica o tipo de substância com maior incidência ou até mesmo quem são essas pessoas. Os poucos dados existentes giram em torno da população que faz uso abusivo de drogas e vivem em situação de rua, dados esses que são organizados pelo Pop na Rua, mas ainda assim, esses dados são insuficientes para o mapeamento da população que faz uso de drogas na cidade de Assis-SP, dessa forma, fica incompleta a contextualização do cenário de adicção dentro da cidade.
Objetivo Geral da Proposta
Implementar um programa de redução de danos no Sistema Único de Saúde (SUS) da cidade de Assis, a partir da lógica de Promoção, Prevenção e Recuperação.
Objetivos Específicos
A. Compreender a população em situação de uso indevido de drogas da cidade de Assis, de maneira interseccional;
B. Analisar os programas existentes na cidade que abrangem a população adicta;
C. Minimizar os danos causados pelo uso indevido de drogas, a partir de uma lógica a curto, médio e longo prazo;
D. Promover a formação dos profissionais da área da saúde de Assis, acerca da redução de danos;
E. Construir e divulgar materiais informativos acerca do uso abusivo de drogas;
F. Possibilitar trocas sociais e de lazer da população adicta com a comunidade.
Proposta de Intervenção
Implementação a curto prazo
Antes de ser realizada ações diretas com a população em situação de uso abusivo de psicoativos é necessário trabalhar a temática com os profissionais da saúde e informatizar a população. Logo as primeiras proposições a serem elaboradas estarão dentro dessa lógica.
1ª Etapa: Formação dos profissionais da saúde da atenção primária (UBS, ESF, UPA, CAPS II, CAPS IJ, Grupo Integrado de prevenção e atenção a Ists e HIV (GIPA) , Pop na rua)
Abordar temas como: Interseccionalidade, necropolítica, redução de danos (a realidade de outros países), exemplificação de determinadas substâncias (rompimento de estigmas), drogas e dependência não são, necessariamente, correlacionadas. Que sofrimento leva ao uso abusivo de drogas? Que negligência do estado? Que vida não vivível é essa que vem sendo entorpecida? Que cuidado é oferecido? e qual cuidado pode ser oferecido? Duração: 2h semanais durante 4 semanas.
2ª Etapa: Confecção de materiais informativos
Elaboração de duas cartilhas: a primeira para a população que acessa o serviço de saúde, trazendo a diferenciação entre dependência e uso de drogas, com intuito de desmistificar a pessoa que faz uso de substâncias, informar sobre os serviços disponíveis para a população adicta. E a segunda, para os funcionários da rede de saúde, exemplificando como os estigmas de pobreza, racialidade e gênero atravessam o sujeito, e dessa forma o manejo deve estar envolto de cuidado, e que não seja reproduzido maiores violências. Produção de mídias que sejam expostas pela cidade, com conteúdo exemplificando o que é redução de danos, utilizando-se de dados do uso de drogas no Brasil, e informes a respeito das diversas substâncias e seus efeitos.
3ª Etapa: Mapeamento das pessoas em uso abusivo de drogas e das condições socioeconômicas.
A partir das informações obtidas por funcionários do Pop na rua, sabe-se que o processo de mapeamento das pessoas em uso abusivo de drogas e que estão em situação de rua já existe, apesar de estar em fase inicial de implementação. No entanto, essa não é uma dinâmica aderida por toda a rede de saúde da cidade. Justamente por isso, busca-se uma articulação com o Popna rua e com o futuro consultório da rua da cidade, a fim de que esses dados possam formar um banco de dados para todos os serviços oferecidos na saúde pública, possibilitando assim, materiais mais concretos que alcancem o número real das pessoas que fazem uso abusivo de drogas e suas condições socioeconômicas. Produzindo assim, um questionário que será aplicado durante o mapeamento, a base deste questionário será o GAM (Guia da Gestão Autônoma da Medicação) [2] que busca um viés humanizado no trato com as substâncias, colocando a pessoa antes da droga.
O mapeamento deve ser realizado de forma conjunta entre as Agentes Comunitárias (ACs) e os Agentes Redutores de Danos (ARD). Sabe-se que em Assis não existe ARD e se faz urgente a contratação de Agentes Redutores de Danos nos territórios de maior incidência. As equipes devem buscar uma aproximação com essa população, e realizar o primeiro contato para coleta de dados e informações do sujeito. É essencial que esses dados abarquem a respeito de idade, raça, gênero, sexualidade, grau de escolaridade, se existe alguma ocupação profissional, se há local de moradia, vínculos familiares, entre outros. Através do mapeamento, será possível identificar o território de Assis com maior incidência de sujeitos em situação de abuso de drogas, e assim direcionar o ARD contratado para os territórios em maior vulnerabilidade, compondo assim, a equipe de funcionários das Estratégias de Saúde da Família (ESFs) responsáveis por esses territórios.
A partir dos dados obtidos pelo mapeamento será possível compreender a demanda e necessidade do território, construindo assim, caminhos de atuação possíveis, tanto de restabelecimento de um vínculo já existente com uma rede de apoio, quanto de construção dessa rede de apoio do zero, por meio do trabalho multiprofissional.
5.2 Implementação a médio prazo
Após o mapeamento do território, e tomada de conhecimento sobre onde estão essas pessoas, qual a relação que se tem com determinada substância, se existe algum vínculo familiar e se há moradia, será possível realizar os devidos encaminhamentos.
4ª Etapa: Articulação com o GIPA
A articulação com o GIPA, a fim de promover o contato com a população que faz uso abusivo de substâncias, pois redução de danos também é prevenção contra proliferação de ISTs. Dessa forma, é essencial levar conhecimento e aparatos de prevenção para esse público, aproximando-os desse serviço na cidade Assis-SP.
5ª Etapa: Kits de redução de danos
Construção e distribuição de kits de redução de danos para as pessoas em situação de uso de drogas. Contendo uma cartilha de orientações da maneira menos danosa de uso de substâncias e a maneira correta de efetuar os testes. Os kits terão como materiais padrões os testes de ISTs, garrafa de água, lanche, preservativos, curativos, álcool em gel. Mas também terá elementos específicos conforme a especificidade de cada substância, por exemplo, no caso de drogas injetáveis haverá álcool em gel, água destilada, recipiente para diluição e seringas. Já drogas que se utilizam através da queima, como crack e maconha, será ofertado cachimbo, piteiras de silicone, seda, manteiga de cacau. É importante ressaltar que não será distribuído drogas, mas sim materiais preventivos para redução dos danos causados pelas substâncias. Os Kits serão distribuídos nas unidades de saúde, bem como as UBSs e ESFs e pelos profissionais do Pop na rua.
6ª Etapa: Anotações do uso da substância
Assim como é muito comum a utilização de tabelas que controlam os níveis de insulina e a pressão, a implementação de anotações da quantidade de substância que vem sendo utilizada diariamente possibilita uma maior compreensão do sujeito acerca do seu uso e dos motivos de seu uso, podendo refletir sobre os elementos de sua vida, os acontecimentos cotidianos que podem ou não influenciar no consumo. A distribuição das tabelas permite um processo de autonomia e de maior participação do sujeito nesse processo.
7ª Etapa: Criação de grupos
Criação de grupos que compartilhem experiências de seu uso com álcool, crack, cocaína, entre outros. Os grupos serão fechados e homogêneos, ou seja, será composto por pessoas que fazem uso da mesma substância, para que através da troca de vivências se crie um entendimento consciente de sua relação com a droga. É importante que esses grupos sejam realizados a partir de uma lógica de redução de danos e não de abstinência, compreendendo que dependência e uso de drogas não são a mesma coisa. Com a inauguração do CAPS AD no segundo semestre, pretende-se que esses grupos ocorram nesse local, semanalmente, com duração de 1h30mim, com mínimo de 3 pessoas e máximo de 25 pessoas. Ademais, considerando que os participantes dos grupos vivem em diversos territórios da cidade, o próprio CAPS AD poderá promover o deslocamento das pessoas que se encontram afastadas, para que assim, participem dos encontros.
8ª Etapa: Articulação com a assistência social
A fim de garantir um respaldo material para esses sujeitos, pretende-se estabelecer um vínculo com a assistência social, apresentando para esse sujeito os serviços disponíveis no qual podem ter acesso, bem como auxílios socioeconômicos, acesso a cestas básicas, e principalmente, na articulação de serviços que sejam possíveis de serem realizados visando possibilidades de assistência de vida para esse sujeito.
5.3 Implementação a longo prazo
Compreendendo que a problemática das drogas tem seus ecos em diversas desigualdades sociais e de opressões, a redução de danos parte de uma lógica integracionista, no sentido de também ter como enfoque de atuação a soberania alimentar, a moradia digna, condições de trabalho minimamente decentes, lazer e acesso à cultura.
9ª Etapa: Centro de convivência
Pensando na problemática de existir pessoas que fazem uso abusivo de drogas e que se encontram em situação de rua, e sem vínculos familiares que possam garantir algum local de moradia e segurança, é idealizada a construção de um centro de convivência, um lugar que possibilite habitação, mas seja também um espaço de troca e construção de afetos. Um lugar construído próximo a cidade, com quartos que tenham banheiro, cozinha comunitária, e através do auxílio de ARDs, psicólogos, assistentes sociais, seja construído uma rotina implicada na convivência e construção do próprio espaço. Os participantes do projeto poderão trabalhar na manutenção do lugar, e também na produção de insumos que possam ser comercializados. Através da criação de oficinas que irão viabilizar o cuidado e uma lógica de reinserção na sociedade, e que além disso, pode gerar algum produto e renda.
Dentro desse espaço também pode ser pensado um trabalho consciente que fuja da lógica de alienação, como por exemplo, uma horta comunitária em que os moradores façam uso, construção e manutenção desse recurso, e dessa maneira, se auto sustentar, e se houver algum excedente, que este possa ser comercializado para a cidade, colocando em prática os princípios da economia solidária e exercitando o olhar de autonomia de suas vidas e perspectivas.
Em busca de romper com os estigmas impostos para essa população, atrelado também a um viés de conscientização, espera-se a construção de diversas atividades em que ocorram trocas dos adictos com a população da cidade, articulando-os em comunidade, bem como o rompimento da lógica manicomial. Logo, vislumbra-se que essa população viva de maneira digna e acolhedora na sociedade, que assim como os muros e portas dos hospitais psiquiátricos foram destruídos e abertos, ocorra por meio da articulação com toda a comunidade, o desmantelamento desse projeto de necropolítica e que seja possível através da arte, da música, da dança, da comida e de diversos outros elementos, trocas, aprendizados, construção e reconstrução de perspectiva de futuro e de vida.
6. Reflexões finais
De acordo com Kopenawa e Albert (2016) o que está sendo nomeado como desenvolvimento e progresso diz respeito ao fim de outros mundos. A necropolítica, desenvolvida pelos povos da mercadoria, segue a mesma lógica ao definir corpos que vivem, corpos que morrem, instaurando a vida a partir da morte, consolidando violências e opressões em nome do cuidado e da saúde.
Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo (KRENAK, 2020, p 27).
Adiar o fim do mundo, é, através da criação de práticas de cuidado, possibilitar que essas existências, que são massacradas pelos povos da mercadoria, sejam e existam no seu território, compartilhando de seu processo de cuidado e reinventando suas trajetórias. A criminalização das drogas existe como uma estratégia de manutenção do sistema colonial, e é necessário articular planos de ação que destruam a estrutura estabelecida.
Os povos originários sempre estabeleceram contato com o meio ambiente através da igualdade, em que a natureza é uma extensão do seu ser, não há abuso na relação da comunidade com seu meio, mas sim harmonia, o que destoa completamente da lógica colonial e capitalista construída através do tempo, o uso abusivo de drogas é construído por uma sociedade brutal. E esse conhecimento de mundo originário deve ser relembrado e passado para outros lugares, como por exemplo na redução de danos, que tem potencial de construir uma relação de harmonia, respeito e cuidado do sujeito com o seu uso de drogas. Utilizar dessa lógica é romper com as amarras da necropolítica, e criar sustentações para que esses corpos participem de sua própria possibilidade de vida.
Neste sentido, busca-se fomentar a discussão e partilhar possíveis práticas de cuidado que visam a autonomia do sujeito nesse processo de produção de bem viver. Assim como, refletir sobre os desafios de cuidado dentro de um estado que se estrutura na lógica da necropolítica, compreendendo as opressões que atingem cada sujeito, suas relações com o uso abusivo de substâncias, e as dinâmicas da necropolítica que exemplifica esse cenário de violência e silenciamento. “Eles virão para nos matar, porque não sabem que somos imorríveis. Não sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras. Sim, eles nos despedaçarão, porque não sabem que, uma vez aos pedaços, nós nos espalharemos”. (MOMBAÇA, 2017, p.20-25).
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[1] Tem como objetivo diminuir os riscos nocivos do uso abusivo de substâncias, contendo preservativos, produtos de higiene e materiais redutores de acordo com cada droga utilizada, bem como seda, piteira, cachimbo, seringas, manteiga de cacau e outros.
[2] É um questionário comumente utilizado pela psiquiatria, a fim de promover a reflexão do usuário com a experiência do uso de medicamentos psiquiátricos, visando sua autonomia e possibilitando a construção de negociações com a medicação e outras formas de tratamento. Espera-se que a utilização deste formulário com a população que faz uso abusivo de drogas possa gerar conhecimento sobre seu uso.
ABNT — NAVASCONI, P. V. P., PASCOAL, T. M., NASCIMENTO, N. P.Querer-Viver-Liberdade: programa de redução de danos na cidade de Assis-SP. CadernoS de PsicologiaS, n. 5, 2023. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/querer-viver-liberdade-programa-de-reducao-de-danos-na-cidade-de-assis-sp/. Acesso em: __/__/_____
APA — Navasconi, P. V. P., Pascoal, T. M., Nascimento, N. P. (2023). Querer-Viver-Liberdade: programa de redução de danos na cidade de Assis-SP. CadernoS de PsicologiaS, 5. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/querer-viver-liberdade-programa-de-reducao-de-danos-na-cidade-de-assis-sp/