Resumo: A pandemia provocada pelo vírus Sars-Cov-2 declarada pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020 trouxe novas demandas para psicologia clínica. Não incidiu apenas nas modalidades de atendimento, mas especialmente em fatores sociais e subjetivos que exacerbaram-se por conta da necessidade de isolamento social, excesso de informações disponíveis, convivência forçada com algumas pessoas por longos períodos e assim por diante. Diante deste cenário, no presente trabalho, separou-se dois casos a partir de vinhetas clínicas em atendimento psicanalítico para perceber impasses teóricos presentes no entrecruzamento dos saberes angariados no curso de graduação, as formações autonomamente buscadas pela e pelo autor como forma de suprir lacunas estruturais no conhecimento acadêmico e clínico e as demandas percebidas no trabalho analítico, dentro de uma perspectiva interseccional, dividindo a presente elaboração, para fins didáticos, em considerações sobre raça e gênero, sucessivamente.
Palavras-chave: COVID-19; raça; gênero.
Race, gender and pandemic: experience reports
Abstract: The pandemic caused by the Sars-Cov-2 virus declared by the World Health Organization in March 2020 brought new demands for clinical psychology. It did not focus only on the modalities of care, but especially on social and subjective factors that were exacerbated due to the need for social isolation, an excess of available information, forced coexistence with some people for long periods and so on. In view of this scenario, in the present work, two cases were separated from clinical vignettes in psychoanalytic care to perceive theoretical impasses present in the intersection of the knowledge obtained in the undergraduate course, the formations autonomously sought by the authors as a way to fill structural gaps in academic and clinical knowledge, and the demands perceived in analytical work, within an intersectional perspective, dividing the present elaboration, for didactic purposes, into considerations about race and gender, successively.
Keywords: COVID-19; race; gender.
Raza, género y pandemia: informes de experiencia
Resumen: La pandemia provocada por el virus Sars-Cov-2 declarada por la Organización Mundial de la Salud en marzo de 2020 trajo nuevas demandas para la psicología clínica. No se centró solo en las modalidades de cuidado, sino especialmente en factores sociales y subjetivos que se agudizaron por la necesidad de aislamiento social, un exceso de información disponible, la convivencia forzada con algunas personas por largos períodos, etc. Ante este escenario, en el presente trabajo se separaron dos casos de viñetas clínicas en la atención psicoanalítica con el fin de percibir impasses teóricos presentes en la intersección de los conocimientos adquiridos en la carrera de pregrado, las formaciones buscadas autónomamente por la autora y el autor como una forma de llenar vacíos estructurales en el conocimiento académico y clínico, y las demandas percibidas en el trabajo analítico, dentro de una perspectiva interseccional, dividiendo la presente elaboración, con fines didácticos, en consideraciones sobre raza y género, sucesivamente.
Palabras clave: COVID-19; raza; género.
O presente escrito tem por objetivo problematizar a experiência do início do atendimento clínico individual em contexto de isolamento social. Tal contexto ocorre por conta da pandemia de COVID-19, declarada em 11 de março de 2020 pela organização mundial de saúde (World Health Organization, 2020), doença causada pelo vírus Sars-Cov-2, altamente contagioso e para a qual não havia, até o momento da elaboração deste manuscrito, cura comprovada ou vacina eficaz amplamente disponível. Some-se a esse contexto a ausência de estratégia unificada entre governos municipais, estaduais e federal em termos de estabelecimento de diretrizes, orientações, proibições e sanções e a disputa narrativa política em torno de temas como a eficácia de determinados medicamentos, a veracidade dos dados sobre a taxa de mortalidade do vírus, dentre outros, gerando, junto à pandemia, uma situação de infodemia (Kalil e Santini, 2020, 01 de abril).
Os efeitos destes fatores precisam ser sopesados, igualmente, com a incidência de variáveis como classe, raça e gênero, já que o isolamento social enquanto estratégia de prevenção ao contágio tem sido desigualmente acessível e gerado diferentes consequências para diferentes setores da população. Neste trabalho buscaremos, de maneira interseccional (Akotirene, 2019) situar a experiência de iniciar o exercício da profissão em psicologia em meio ao contexto da atual pandemia, de forma a apresentar alguns dos impasses teóricos gerados entre o conhecimento recebido na graduação e os desafios da atualidade.
A fim de realizar tal propósito serão feitos recortes de vinhetas clínicas em dois tópicos: gênero e raça. Tais miradas não devem ser tomadas como formas de constituição de objetos distintos, mas sim como enfoques que buscam, a partir de diferentes pontos de vista, debruçar-se sobre um mesmo fenômeno. Parte-se, igualmente, de teorizações do campo psicanalítico, tendo em vista que a abordagem clínica da autora e do autor dialogam diretamente com os problemas percebidos durante seu trabalho junto a pacientes em contexto de isolamento social e pandemia. Utiliza-se, para tanto, o amparo de vinhetas clínicas com dados devidamente modificados para evitar a identificação das pacientes envolvidas (Dallazen et al., 2012) como forma de pesquisa ética em psicanálise.
É possível fazer psicologia sem falar em raça? A quem argumenta que sim a resposta pode ser dada de maneira breve: sempre estamos falando em raça já que a constituição do sujeito passa, necessariamente, pelo outro, naquilo que Jacques Lacan denominou estadio do espelho. Nas palavras do psicanalista francês, tal estágio do desenvolvimento humano constitui “uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, é a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (Lacan, 1949/1998, p. 97). Para Lacan, a constituição de uma imagem unificada de si passa, necessariamente, pelo olhar e o falar do outro sobre si, e pela percepção do outro enquanto imagem unificada, chegando à construção de si enquanto imagem unificadora dos processos pulsionais existentes no corpo.
Logo, a identificação não se dá num vácuo, mas dentro das características disponíveis em determinado espaço cultural e tempo histórico. É por isso que, por exemplo, Rita Segato (2006) falará em um Édipo brasileiro, já que a figura da mãe em um espaço cultural marcado pela colonialidade é cindida entre uma mãe branca, delicada, carinhosa e civilizada, e uma mãe negra, forte, em contato com saberes “místicos” e voltada a serviços braçais. A rigor, a categoria “mulher” não foi aplicada igualmente a pessoas entendidas como sendo do sexo feminino já que as mulheres de cor (especialmente negras e indígenas), seguiram por muito tempo sendo vistas como “fêmeas”, aproximando-as de uma figura animalesca, construção que, como veremos adiante, persiste nos dias de hoje. Neste mesmo sentido, pensa Maria Lugones (2008, p. 95):
Historicamente, a caracterização das mulheres européias brancas como sexualmente passivas e fisicamente e mentalmente frágeis as colocou em oposição às mulheres colonizadas e não brancas, incluindo as escravas, que, em vez disso, foram caracterizadas em uma série de perversões e agressão sexual e, também, consideradas forte o suficiente para realizar qualquer tipo de trabalho.
As estruturas coloniais não são apenas um elemento do passado que se dissipou logo após a abolição da escravidão em 1888. Pelo contrário: há uma forte continuidade histórica naquilo que Richard Miskolci denomina “O desejo da nação” (2013), ou seja, um projeto virilizante voltado à constituição de uma subjetividade central masculina, branca, proprietária como modelo a partir do qual os outros sujeitos (mulheres brancas, homens e mulheres de povos originários e afrodescendentes) deveriam se situar.
Foi através de movimentos como o sufocamento de revoltas populares, o alistamento compulsório no exército, o fomento a discursos e práticas que associavam negritude à periculosidade e indígenas à indolência, internatos para rapazes, dentre outros instrumentos, que “ganhava adesão o projeto de disciplinar homens das classes populares (…) tornando-os cidadãos brasileiros por meio da incorporação, corporal e subjetiva, da ‘branquitude’ cultuada pelos nossos homens de elite” (Miskolci, 2013, posição 2623). Logo, falar em modos de subjetivação no contexto brasileiro é, necessariamente, questionar o lugar da branquitude nessa construção.
Brancos são também uma população racializada, tendo em vista que o conceito de raça não reflete uma realidade biológica, mas sim social. A branquitude, categoria a partir da qual se poderia pensar o ser branco, é definida por Priscila Cardoso (2017) como
…um construto ideológico, no qual o branco se vê e classifica os não brancos a partir de seu ponto de vista. Ela implica vantagens materiais e simbólicas aos brancos em detrimento dos não brancos. Tais vantagens são frutos de uma desigual distribuição de poder (político, econômico e social) e de bens materiais e simbólicos. Ela apresenta-se como norma, ao mesmo tempo em que como identidade neutra, tendo a prerrogativa de fazer-se presente na consciência de seu portador, quando é conveniente, isto é, quando o que está em jogo é a perda de vantagens e privilégios. (…) a branquitude no Brasil, assim como em outros contextos nacionais, não pode ser entendida como um padrão único visto a especificidade de nossa história nacional e, sobretudo, como as ideias sobre raça compuseram essa história (…) os efeitos produzidos pelo processo de miscigenação e pela ideologia do branqueamento. (Cardoso, 2017, p. 27-28)
Em outras palavras, o diferencial da branquitude está em situar-se como universal, de forma a tomar as próprias narrativas como representativas de uma vivência neutra, e não como experiência singular. Isso é importante para se pensar a resistência que ainda persiste em se considerar a categoria raça como central em análises do campo psi e na formação básica de psicólogas e psicólogos. Em levantamento informal acerca de cursos de psicologia em Curitiba feito a partir do Guia de Graduação (Gazeta do Povo, 2020), listagem online dos cursos de graduação existentes na capital, e posterior visita às páginas dos respectivos cursos e visualização ou download das ementas, foi constatado que das 14 faculdades de psicologia existentes na capital paranaense, apenas 3 disponibilizavam disciplinas regulares e/ou optativas nas temáticas estudos étnico-raciais e relações étnico-raciais.
Surge aí o primeiro dilema entre considerar-se apto a trabalhar com o mal-estar do outro e o instrumental que embasa tal trabalho: é possível, em especial nas vivências de uma pessoa não-branca, excluir a dimensão racial do sofrimento de uma clínica individual? O caso que ilustra a resposta a essa pergunta é de atendimento realizado exclusivamente pela modalidade online a uma jovem negra, estudante ‘universitária, que buscou a terapia por um sentimento de estranheza e não pertencimento. Alguns dados não determinantes para a compreensão do caso foram alterados para preservação da identidade da paciente.
Ao longo das sessões ela relatou sua história. Atualmente em união estável, vinda de uma família pobre e moradora da periferia de uma capital do Centro-Oeste, sua narrativa se entrelaça à violência de seu contexto familiar e social, às sequelas deixadas em outros membros de sua família por conta de tais circunstâncias e às estratégias utilizadas por ela para fugir a esse contexto, que acabaram desembocando em sua vinda para Curitiba para prosseguimento em seus estudos. É notório perceber que, nessa trajetória, o ativismo racial teve um papel central em termos de conectá-la a outras narrativas semelhantes e construir sua imagem a partir de um outro um pouco mais próximo de si e distante do grande Outro branco presente no imaginário brasileiro.
Como explica Neusa Santos Sousa (1983), tornar-se negro não é algo dado, já que o lugar atribuído ao negro na economia da subjetividade de uma sociedade branca é o lugar de sombra do branco. Ou seja, aquelas características negadas na construção da branquitude, que se encara como civilizada, racional e bela, são projetadas sobre o sujeito negro, que passa a ser constituído como um duplo negativo. A esse respeito, Frantz Fanon (2008) escreve que:
Há, na Weltanschauung [visão de mundo] de um povo colonizado, uma impureza, uma tara que proíbe qualquer explicação ontológica. Pode-se contestar, argumentando que o mesmo pode acontecer a qualquer indivíduo, mas, na verdade, está se mascarando um problema fundamental. A ontologia, quando se admitir de uma vez por todas que ela deixa de lado a existência, não nos permite compreender o ser do negro. Pois o negro não tem mais de ser negro, mas sê-lo diante do branco. Alguns meterão na cabeça que devem nos lembrar que a situação tem um duplo sentido. Respondemos que não é verdade. Aos olhos do branco, o negro não tem resistência ontológica. De um dia para o outro, os pretos tiveram de se situar diante de dois sistemas de referência. Sua metafísica ou, menos pretenciosamente, seus costumes e instâncias de referência foram abolidos porque estavam em contradição com uma civilização que não conheciam e que lhes foi imposta. (Fanon, 2008, posição 1605, frase entre colchetes adicionada).
Atuar dentro organizações políticas ligadas à luta antirracista e à promoção de valores e narrativas positivas acerca das populações negras é uma forma de realizar uma torção no sentido dado à negritude, permitindo uma lenta reconfiguração de um ideal do eu agora não mais branco, ou seja, mais passível de ser apropriado pelo sujeito. Conquanto a vivência em coletivo traga outros riscos de alienação institucional, no caso da paciente foi perceptível o ganho subjetivo trazido por esse envolvimento, persistindo, entretanto, um estranhamento fora dos contextos de estudos e militância. Mesmo a atuação puramente virtual guardou um valor importante durante o período de atendimento analisado, uma vez que o contato constante com tal dimensão criativa e combativa da própria vivência era frequentemente trazido para a elaboração das questões pessoais.
A essa experiência de estranhamento de si da pessoa negra pode-se atribuir o valor de encontro com o infamiliar, aquilo que Maria Vanucchi (2017, p. 62) vai pontuar como sendo algo presente também na experiência do racismo, que teria a estrutura da paranoia, ou seja, de um conhecimento certo sentido pelo sujeito sobre o outro, que chega a ser visto como ódio não por sua diferença, mas por sua estranha familiaridade. Dito de outro modo, o sujeito negro convive com um estranho dentro de si formado pela assimilação forçada do resto projetivo da pessoa branca, que imputa a ele características que não são sentidas como suas, mas são vistas em si em alguns momentos. E o sujeito branco convive com uma estranha certeza de saber sobre o negro sem, entretanto, se dar conta de que tal saber é oriundo do atravessamento de discursos históricos racializados e racistas, que são então naturalizados.
A paciente chega, em sessões posteriores, à percepção de que sua tentativa de constituição de si passa por perceber que tal estranheza se manifestava quando esta precisava atuar fora de um papel determinado, ou seja, fora de um contexto que lhe atribuísse um lugar assegurado como amiga, militante, companheira afetiva ou profissional. Neste momento sua angústia se revelava intensa justamente por não saber o que o outro esperava de si, confrontando-a com uma suposta verdade sobre a menor valia de sua subjetividade.
O trabalho com esta paciente no contexto da pandemia envolveu igualmente a depuração do papel de cuidadora das dores alheias, uma narrativa constante na vivência de mulheres negras enquanto percebidas como naturalmente inclinadas ao cuidado do outro, em especial do sujeito branco. Por diversas semanas foram trazidos relatos sobre como as pessoas de seu entorno traziam-lhe seus problemas pessoas e angústias relacionadas ao momento presente, e como a paciente tinha maior facilidade em se conectar com tais angústias do que com suas próprias questões. A percepção da constância destes movimentos de alienação trouxe uma retificação subjetiva (Quinet, 2009) no sentido de incitar a paciente a se questionar da onde vinha a obrigatoriedade sentida no momento de amparar o outro.
Foi revisitando sua história enquanto caminho permeado por esforços para se descolar de seu contexto periférico original e as culpas presentes no sucesso por este trajeto que se pôde começar a desenovelar tais fios discursivos e tecer movimentos autênticos de cuidado de si em meio à pandemia. Para tanto o analista precisou se valer de materiais que sequer foram mencionados em sua formação acadêmica, uma vez que reduzir suas questões a uma abordagem tradicional da psicanálise sobre o sofrimento feminino recairia em diversos vazios discursivos relacionados a sua classe social e percepção racializada de sua realidade. Note-se que saberes de gênero atravessaram igualmente tais impasses teóricos, já que a interseccionalidade (Akotirene, 2019) diz respeito justamente à percepção de que os discursos identitários nunca se encontram em estado puro, mas sim entrecruzam-se profundamente. Vejamos como outro caso revela igualmente algumas dificuldades do início da clínica.
A fantasia é conceituada como modo pelo qual o sujeito imagina sua vida, a via em que significamos o real (Leandro, Couto & Lanna, 2011). Dentre as tramas que criamos para reconhecermos nossa história, a fantasia da segurança, por vezes, é a mais repetitiva. Fantasiamos que estamos seguros em nossos trabalhos, em nossas casas e, no caso de nós, mulheres, fantasiam por nós que estaremos seguras se andarmos sempre acompanhadas por um homem.
A violência entre parceiros íntimos é globalmente conhecida e mais de um terço das mulheres que são assassinadas no mundo são mortas nas mãos de um parceiro íntimo (Stöckl et al., 2013). No mês de março de 2020, primeiro mês em que foi adotado o isolamento social, medida sanitária para combate da pandemia provocada pelo vírus Sars-Cov-2, houve aumento de 51,4% de prisões em flagrante relacionadas ao tópico em comparação com o mês anterior (Isto É Dinheiro, 2020, 01 de junho). Para explicar o aumento de agressões físicas, Vieira, Garcia e Maciel (2020) argumentam que, ao passar mais tempo no ambiente doméstico, o homem passa a controlar as interações de sua companheira, além se tornar mais rígido com o controle das finanças. A partir do momento que é explicado o fenômeno do aumento da violência física citando violência psicológica e econômica, surge outro questionamento: como tratar o aumento da violência contra mulher durante a pandemia como um fenômeno novo?
A estrutura social está toda organizada em torno do gênero, tecendo redes de poder masculino sobre o feminino a ponto dessa desigualdade ser tanta que nomeamos de violência. Butler (2016) salienta que a violência torna-se uma questão de gênero a partir do momento que mesmo os indivíduos que não foram violentados temem ser, apesar de nem sempre essa realidade ser verbalizada e percebida pelos sujeitos que sofrem com ela.
O assunto de violência contra mulher é recorrente no discurso de uma paciente jovem, que relata crises de choro ao ler consumir notícias sobre o assunto, no entanto, alterna o foco de seu discurso imediatamente, justificando que não sabe o motivo de tamanho desconforto. Inclina sua fala para outro objeto, relatando algo de sua rotina. Observa-se que a ideia de tratar do tema durante a psicoterapia a incomoda, entretanto, as queixas continuam recorrentes.
Para adentrar o caso, é necessário contextualizar que a jovem apresenta histórico de violência de gênero por parte de um parceiro íntimo, da qual, no início da análise, descreve os acontecidos como observadora, sem imprimir percepções pessoais e refere sempre não ter traumas em relação a violência sofrida. Muito tempo de suas sessões é dedicado a contar sobre rapazes que se envolve, frisando que não deseja se envolver em um relacionamento sério, pois não gosta de fazer atividades consideradas de casal. Ao ser questionada sobre quais são as atividades de casal, responde que casais brigam, discutem e almoçam em família no domingo.
O trabalho acerca da ressignificação do que é ser um casal emergiu alguns questionamentos por parte da paciente sobre seu próprio comportamento. Como resultado, após meses de psicoterapia, a paciente conclui que seu desejo de sair sempre com vários homens fazia parte de sua fantasia de ter superado a violência que sofreu. Ela passou a revisitar momentos de sua vida que foram impactados pela violência e a tratar do caso não mais como observadora, mas como protagonista de uma história, lidando com o real e abandonando a fantasia criada para amenizar seu sofrimento.
No contexto da pandemia, a paciente trouxe novamente a queixa de angústia ao consumir notícias de mulheres violentadas fisicamente, no entanto após mais de um ano lidando com a questão, referiu que esse sentimento é proveniente da ciência de que ela poderia ter sido a vítima.
A Psicologia é tida para muitos como uma ciência imparcial, que observa apenas o indivíduo e sua história de vida. Essa é a forma mais parcial possível de se fazer Psicologia: ignorando as construções sociais que permeiam a existência de um indivíduo. A não abordagem de temas como racialidade e gênero na formação de psicólogos compactua com a estrutura violenta que aborda estes tópicos, já que a assunção de um sujeito neutro por trás das teorias psicológicas ignora o impacto profundo existente na incidência de variáveis de gênero e raça. Nenhum desses saberes, por si só, dá conta de explicar a subjetividade que se encontra diante da e do terapeuta, até porque, explicar significa desdobrar, desfazer plicas que, em latim, significam dobras. Permitir ao sujeito enunciar as verdades que o trouxeram até aquele momento, posicionar-se eticamente diante delas, não mais como discursos naturalizados, é exatamente o movimento de saúde fundamental em um contexto no qual somos confrontadas e confrontados com uma presença ostensiva de nós mesmos e do outro, para além da multidão.
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ABNT – MARTINS, D. F. W.; BONAMIGO, V. G. Raça, gênero e pandemia: relatos de experiência. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/raca-genero-e-pandemia-relatos-de-experiencia>. Acesso em: __/__/____.