Quando vi a possibilidade de ainda, enquanto estudante, poder escrever para a revista, logo me veio à cabeça o famoso “por que não?”, e apesar de escrever ser um hábito, é desafiador pensar que outras pessoas irão ler (risos de nervosismo). Lendo sobre as modalidades, deparei-me com a ‘Estilhaço’, que para mim, só pelo nome, já me remetia a pedaços, a fragmentos, algo incompleto, conduzindo-me a pensar em algo pessoal para além do técnico acadêmico.
E pensando em o que escrever, logo me vi nestes estilhaços. Me peguei pensando no meu próprio processo de formação, e em questões de segundos, percebi-me passeando pelos estilhaços de mim mesma causados pelo impacto da graduação. Esse processo, que para mim foi transformador, estilhaçou visões, opiniões, conhecimento e vivencias, fazendo-me reconstruir o que me faz e me fez ‘ser’ na psicologia. Tentei, neste pequeno texto, percorrer as questões que passaram na minha cabeça durante todo o percurso, destacando ao final o que mais encanta nessa formação.
“Acho que só é psicólogo aquele que passou por algum sofrimento psíquico”, essa foi a frase de um amigo quando conversamos no começo da graduação sobre o porquê de escolhermos Psicologia.
Apesar da pergunta “por que você escolheu cursar psicologia?” ter nos acompanhado durante os primeiros períodos da graduação, foi somente quando conversamos que comecei a pensar se era por isso que eu havia escolhido psicologia. Será que meus sofrimentos psíquicos me impulsionaram a escolher o curso? Embora eu ainda não tenha respondido essa pergunta, acho engraçado o fato de pôr vezes, ao estudar psicologia com todas suas teorias, patologias, casos clínicos e histórias, muitas vezes, nos colocamos mesmo que sem querer, como observadores de nós mesmos. E acredito ainda que essas constantes observações de nós mesmos durante toda a graduação é a chave para a nossa formação profissional.
Talvez nosso primeiro paciente/cliente (dependendo da perspectiva adotada, risos) somos nós mesmos. Realizamos a anamnese das nossas próprias vidas, tentando lembrar como foi nosso nascimento e os primeiros anos, buscando na memória se deu tudo certo no parto, na amamentação etc.
Depois, pensamos se Piaget, Vygotski, Freud, estavam certos em como explicaram o processo de desenvolvimento, nossas fases e a forma como aprendemos. Questionamos a nós mesmos internamente se fazíamos tudo o que falaram, será que me desenvolvi da forma certa?
Começamos a refletir sobre nosso próprio átomo social como diz Moreno, ou como gosto de pensar, sobre nossa rede de apoio. Minha mãe foi suficientemente boa como Winnicott mencionou? E minha figura materna, minha figura paterna, fizeram o que tinha que ser feito? Como foi minha fase fálica, meu complexo de édipo, minha castração? Como Freud pensou em tudo isso?
Além disso, minha adolescência, que para mim teria sido incomum e conturbada, foi tranquilizada quando Aberastury e Knobel explicaram que na verdade tudo era normal e esperado. Mas depois, me peguei pensando também qual é então meu desejo reprimido? O que está reforçando meu comportamento? Onde foi parar minha espontaneidade e o que eu faço com essa tal conserva cultural? Quais meus arquétipos, minha sombra?
Sem falar que, por muitas vezes nos pegamos se encaixando nos critérios de alguma psicopatologia do DSM, do nada nos vem que talvez temos ou tivemos no decorrer da nossa vida, depressão, ansiedade, fobias, um grau leve de autismo ou TDAH, e dependendo, ainda podemos estar incluídos nos critérios de bipolaridade, de borderline, com todas as nossas instabilidades.
Ao mesmo tempo, foi assustador quando parei para refletir que pessoas próximas se encaixavam como uma peça de quebra cabeça nos critérios de depressão, de transtorno do pânico e o assustador nisso é pensar que talvez nossa profissão foi elitizada demais para chegar até elas.
Onde estavam os psicólogos quando essas pessoas precisaram? Por que elas nunca comentaram sobre terem recebido ajuda ou orientação sobre saúde mental? Onde o sistema falhou? Nunca tive psicólogo na minha escola pública, nunca vi a psicóloga do postinho (Unidade Básica de Saúde), nem sabia onde ficava o CAPS mais perto de casa. A vida delas poderia ter sido mais fácil.
E embora sabemos da importância do sono, da alimentação saudável, da prática de exercícios físicos e do contato social muitas vezes durante o processo acadêmico esquecemos de seguir tudo isso e é irônico perceber que frequentemente nos tornamos um exemplo vivo da contradição humana. Enquanto aconselhamos e entendemos profundamente a importância de cuidar de nossa saúde física e mental, muitas vezes nos vemos negligenciando nossas próprias necessidades básicas. Essa dicotomia nos lembra de que, apesar de estudarmos os seres humanos, às vezes podemos nos ver esquecendo de que somos, antes de tudo, humanos também.
Percebo agora que, apesar de não ter respondido se meus sofrimentos psíquicos me influenciaram a escolher psicologia, sei que não são eles que me impulsionam a continuar. Pois foi estudando que aprendi, especialmente, que há beleza no subjetivo e que não há outra profissão, a não ser a nossa, que permita acessar o que há de mais fascinante no ser humano, que é o fato de cada ser ser único.
E por fim, chegando na reta final da graduação, me questiono se estou preparada e capacitada para atuar. Ao mesmo tempo que esse sentimento me pressiona, lembrar que cada ser é único me tranquiliza, pois assim percebo que, é no encontro da minha singularidade com a singularidade do outro que reside a oportunidade de aprendizado e crescimento. Entendendo, sobretudo, que somos seres feitos de processos, progressos e mudanças, onde não se tem linearidade no caminho, e o fato de estarmos nos moldando de forma contínua me lembra da infinita possibilidade de evolução e da complexidade humana que só consegui enxergar quando coloquei a lente da Psicologia.
ABNT — ANDRADE, T. S. (Re)Construção do que me faz ser na psicologia. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/reconstrucao-do-que-me-faz-ser-na-psicologia/. Acesso em: __/__/___.
APA — Andrade, T. S. (2023). (Re)Construção do que me faz ser na psicologia. CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/etica-em-reproducao-assistida-reflexoes-sobre-a-atuacao-profissional-dao-psicologao/