Revista CadernoS de PsicologiaS

Reflexões sobre a atuação do Psicólogo Clínico a partir da Covid-19

Luzia Carmem de Oliveira
Associação Psicanalítica de Curitiba (APC)

Psicóloga (CRP-08/15038). E-mail: lcarmemoliveira.psi@gmail.com
#Inquietações_teóricas

Resumo: Este escrito objetiva promover reflexões sobre atuação em psicologia clínica a partir da pandemia da Covid-19, buscando registrar elementos da travessia do profissional por essa experiência traumática que deixa suas marcas na história da humanidade.

Palavras-chave: vínculo; angústia; pandemia.

Reflections on the performance of the Clinical Psychologist from covid-19

Abstract: This paper aims to promote reflections on performance in clinical psychology from the Covid-19 pandemic, seeking to record elements of the professional’s journey through this traumatic experience that leaves its marks on human history.

Keywords: link; anguish; pandemic.

Reflexiones sobre el desempeño del Psicólogo Clínico desde el covid-19

Resumen: Este artículo tiene como objetivo promover reflexiones sobre la actuación en psicología clínica desde la pandemia Covid-19, buscando registrar elementos de la travesía del profesional desde esta experiencia traumática que deja su huella en la historia de la humanidad.

Palabras clave: vínculo; angustia; pandemia.

“O hábito tem-lhe amortecido as quedas. Mas sentindo menos dor, perdeu a vantagem da dor como aviso e sintoma. Hoje em dia vive incomparavelmente mais sereno, porém em grande perigo de vida: pode estar a um passo de estar morrendo, a um passo de já ter morrido, e sem o benefício de seu próprio aviso prévio.”

Clarice Lispector

Coronavirus Disease (COVID-19), doença que acometeu ao mundo e  adquiriu o status de pandemia, causada pelo novo corona vírus, deixa suas marcas na história da humanidade. Os primeiros casos ocorreram na China, ao final do ano de 2019 e rapidamente se alastrou pelos demais países, alcançando todos os continentes. Conforme o site do Ministério da Saúde do Brasil[1] a primeira pessoa contaminada confirmada no país ocorreu em fevereiro/2020.

A pandemia instaurou um cenário atemorizante em razão do vírus possuir alta aptidão para sobrevivência em superfícies fora do corpo humano, resultando em capacidade de contágio rápido, ocasionada pelo contato. A doença agride o corpo de forma violenta (embora haja muitas pessoas que se contaminam e não a desenvolvem) e mesmo que inicialmente tenham sido mapeadas as características de saúde das pessoas que estariam mais suscetíveis ao adoecimento, o vírus mostrou uma inversão dessa categorização constatada pelas mortes que em princípio não se enquadravam nos ditos grupos de risco.

Assim que se confirmam as primeiras informações acerca da enfermidade, cientistas de todo o mundo passam a pesquisar vacinas, que até o momento deste escrito encontravam-se em início de testes[2]. Os medicamentos prescritos se mostram com ação limitada para muitas pessoas e, assim, a orientação principal da Organização Mundial da Saúde, buscando evitar a difusão do vírus, incide sobre a população praticar o isolamento e o distanciamento social (política conduzida por cada país), utilização de máscaras em momentos que sejam necessários estar no social e uma frequente higiene das mãos e superfícies[3].

Ocorre que diariamente o número de pessoas contaminadas e mortas pela Covid-19 é expressivo, sendo que o Brasil apresenta um dos índices mais preocupantes do mundo, conforme notícias veiculadas na impressa[4]. Cada país estabelece seu plano para conter o avanço da doença, e entendemos que no Brasil a falta de uma conduta norteadora do Governo Federal, deixando a critério dos estados o estabelecimento das diretrizes, dificultou o controle do contágio e adoecimento das pessoas.

Ocorreram mudanças significativas na vida da população, destacando-se o isolamento social com suas consequências. Atividades escolares presenciais foram suspensas e passaram para o formato virtual, empresas fecham ou sofrem retrações aumentando o desemprego, atividades laborais possíveis passam para o home office, eventos e projetos foram suspensos, houveram rupturas de relacionamentos e casais anteciparam uniões para não se distanciarem neste período.

Com todas as modificações e um cenário que evidencia a morte, uma enxurrada de notícias invade a todos, demarcando a tragédia. Os profissionais da área de saúde que vinham se debruçando em trabalhos voltados para a saúde mental, veem o vertiginoso aumento nos índices de adoecimento mental e de sofrimento, constatado por relatos de pacientes, analisantes, amigos, familiares, mídia e pesquisas. Medo, terror, angústia, tristeza são afetos prevalentes em detrimento dos relatos de conquistas e vivências prazerosas, apesar dos inúmeros estímulos e orientações para minimizar o desconforto no período de pandemia.

Psicóloga(o)s que caminhavam em processo de adesão voluntária para o formato de atendimento on-line aceleraram seus passos, pois com o cenário de risco estabelecido o atendimento presencial foi desestimulado, sendo mantido apenas em situações graves que necessitavam dar continuidade ao processo terapêutico e não haviam condições para continuar em formato virtual. Para muitos profissionais a mudança foi precipitada pela situação de emergência, não sendo um modelo adotado anteriormente, de modo que muitos tiveram que se adaptar lidando com seu desconforto.

O Conselho Federal de Psicologia, por meio da Resolução CFP nº11/2018, regulamentou a prestação de serviços psicológicos realizados por meio de tecnologias da informação e comunicação, em consonância com a mudança pela qual o mundo passou com o advento da internet. Os trabalhos por meio virtual passaram a ser uma realidade e conta atualmente com uma presença maciça da tecnologia da informação na vida da população, embora para alguns setores da sociedade o acesso seja limitado ou até inviável. Sempre primando pelos princípios éticos, técnicos e administrativos da profissão, a Resolução determina que o profissional que desejar aderir à nova modalidade de atendimento, deve proceder à realização de cadastro prévio no Conselho Regional de Psicologia.

Algumas ressalvas que constam desta Resolução merecem destaque: o atendimento de crianças e adolescentes deve ser realizado com o expresso consentimento dos pais, e avaliada criteriosamente pelo profissional a viabilidade do mesmo. Além disso, fica expressamente vedado o atendimento a grupos em situação de desastre e emergência e pessoas ou grupos que tenham seus direitos violados ou estejam em situação de violência. Estes devem ocorrer de forma presencial.

Como sucede em situações de mudanças, essa suscitou dúvidas, questionamentos, resistências por parte de alguns, mas para outros abriu possibilidades de trabalho. Os Conselhos de Psicologia precisaram organizar orientações sistemáticas, oferecendo eventos para esclarecimentos, conduzindo a situação para uma acomodação e uma realidade a fazer parte da prática profissional.

Por ocasião da pandemia da Covid-19, em 30/03/2020 o Conselho Federal de Psicologia publica a Resolução 04/2020, que, em linhas gerais, flexibiliza o cadastro dos profissionais na plataforma e-Psi, bem como autoriza o atendimento para pessoas e grupos em situação de emergência e violência, por meio de tecnologia digital. A flexibilização do Conselho vai ao encontro à ética da profissão, permitindo agilidade nos processos e assim estimulando que a classe migrasse para o atendimento on-line, aderindo ao isolamento social e mantendo os trabalhos, essencial no período de crise.

A pandemia, situação trágica e traumática, com seus riscos e limitações, acometeu a todos (embora a vivência seja singular), chegando às nossas vidas e aos nossos consultórios, de modo que a(o) psicóloga(o) escuta o sofrimento de seu paciente e ao mesmo tempo realiza sua travessia, vivenciando sua angústia, temores e lutos. Partindo desse evento que deixa suas marcas em nossa história, este escrito traz reflexões a partir da atuação em psicologia clínica, bem como se propõe a realizar um registro deste momento histórico repleto de sofrimento, pelo olhar de uma psicóloga clínica atravessada pela teoria psicanalítica.

O vínculo

A busca pela compreensão, teoria, estudos a respeito do vínculo faz parte da formação em Psicologia. Neste trabalho, partimos da premissa que não há processo terapêutico possível sem que se estabeleça, entre paciente e psicólogo ou analisante e analista, o chamado vínculo para algumas abordagens teóricas e transferência para a psicanálise.

Vínculo significa “capacidade de ligar, unir, atar,” Ferreira, (1999, p. 2074). Pode-se ver relações vinculares entre os seres que habitam/compõem a natureza, no organismo biológico com todo seu funcionamento, em processos subjetivos nas relações entre os afetos e nas relações sociais.

Freud (1920/2010) postulou os conceitos de pulsões de vida e pulsões de morte, sendo que as primeiras geram incômodo interno colocando o organismo em movimento, estimulando o sujeito na construção de laços sociais, e as segundas buscam quietude que se aproxima de um estado de morte ou desagregação destrutiva. As duas pulsões encontram-se no organismo de forma mesclada/vinculada, em medidas diferentes.

Nesta luta entre vida e morte, os humanos buscam estabelecer vínculos, ligações afetivas, uniões e ao mesmo tempo são destrutivos, desagregadores. Os primórdios das relações de vínculo aparecem na filogênese e ontogênese humana. O bebê humano necessita ser cuidado, alimentado, higienizado, investido de libido, de palavras, de afeto, para que consiga sobreviver, possuindo uma dependência em relação ao outro que o assiste por mais tempo que outras espécies animais. A dinâmica de presença-ausência do ser materno que atende as necessidades da criança, mas também lhe frustra, a inserem em uma cadeia simbólica.

A caminho de sua constituição enquanto sujeito, o humano passa pelo processo de identificação, o laço emocional mais antigo estabelecido, marcado por ambivalência, pois pode se tornar desejo de aproximação ou de afastamento em relação ao outro (Freud, 1923/2011). A identificação tem como objetivo modelar o Ego conforme aquele que se utiliza como modelo (Imago materna ou paterna), de modo que é possível se identificar e ter a mesma pessoa como objeto amoroso (Freud, 1921/2011).

Partindo do processo de identificação vislumbramos o possível estabelecimento de relações sociais ao longo da vida, sendo esse o traço para o enlaçamento dentro de grupos (Freud, 1921/2011). As relações de dependência entre os indivíduos se modificam à medida que há o crescimento, passando por várias etapas e lugares como: escolas, trabalhos, grupos e relação afetiva (Zimerman, 2010). Várias dessas relações se distanciam fisicamente no período de isolamento social ocasionado pela pandemia, de modo que o vínculo se torna ainda mais premente.

Para que um trabalho terapêutico seja possível, faz-se necessário o estabelecimento do vínculo que permite ao paciente estabelecer, neste outro, o lugar de escuta para suas questões. Freud nomeia esse dispositivo de transferência:

…todo ser humano, pela ação conjunta de sua disposição inata e de influências experimentadas na infância, adquire um certo modo característico de conduzir sua vida amorosa, isto é, as condições que estabelece para o amor, os instintos que satisfaz então, os objetivos que se coloca. Isso resulta, por assim dizer, num clichê, que no curso da vida é regularmente repetido, novamente impresso, na medida em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos acessíveis o permitem, e que sem dúvida não é inteiramente imutável diante de impressões recentes. (Freud, 1912/2010a, p. 135).

Parte dos impulsos libidinais não se desenvolvem, separando-se da personalidade e permanecendo inconsciente. Uma parte desses impulsos insatisfeitos se volta para a pessoa do terapeuta, apegando-se a modelos, incluindo-o numa das séries que o paciente formou até então. Deste modo a transferência (vínculo) se baseia nas imagos paterna e materna, sendo esse um processo inconsciente, base essencial para que seja possível o trabalho em análise/terapia (Freud, 1912/2010a).

Independentemente da técnica de trabalho utilizada pelo profissional da psicologia ou de seu referencial teórico, o vínculo é condição indispensável para a efetivação do processo terapêutico, pois como nos coloca Zygouris o sujeito busca “um lugar onde se possa falar” (2011, p.7) e fora o lugar que a Igreja ocupa para o crente, não há nenhum outro lugar onde ele possa falar e ser ouvido, senão em seu espaço de terapia. Espaço esse que oferece ao sujeito uma escuta diferenciada para seu sofrimento.

O processo terapêutico permite ao indivíduo tentar elaborar uma narrativa histórica para suas questões, acedendo à possibilidade de modificação de aspectos subjetivos, novas escolhas, apaziguamento da angústia, alívio para o sofrimento. Além disso pode conscientizar-se, apropriando-se de conteúdos subjetivos outrora desconhecidos, um processo de autoconhecimento (Santos et al., 2017).

Entretanto, o clínico deve estar advertido que buscar um atendimento psicológico não garante a construção do vínculo ou da transferência para que se componha uma dupla de trabalho. A constituição destes laços é verificada à medida que o processo avança e mediante a interrupção do trabalho nem sempre é possível identificar o que houve para que não se prosseguisse com o mesmo. De todo modo, refletir acerca dos elementos que compõem uma relação terapêutica, mesmo quando ela não chega a se estabelecer, é um compromisso ético do profissional, sempre realizado a posteriori e em algumas situações se fazendo necessário a escuta de um terceiro (supervisão clínica).

No período de pandemia, com os atendimentos ocorrendo majoritariamente em formato on-line nos deparamos na clínica com pacientes que se encontravam em psicoterapia e que não conseguem migrar para o novo formato. Mesmo havendo um vínculo previamente estabelecido, o distanciamento físico gera significativo impacto. Em contrapartida há pacientes que se instalam comodamente na nova modalidade de trabalho. Ao profissional cabe fazer a leitura do momento e da condição de cada um, não somente de estabelecer o vínculo mas também de sustentá-lo, sempre no um a um, respeitando as possibilidades sinalizadas por seu paciente.

O profissional e sua angústia

Primeiro dia de aula do curso de Psicologia, a professora sugere que a turma se apresente e ao fazê-lo mencione qual a motivação para a escolha do curso. Quando o primeiro aluno relata que buscou o curso para se autoconhecer a resposta foi imediata: “então vá fazer terapia!”. Por algum tempo essa resposta ecoou como uma questão, até chegar à compreensão.

Com essa breve introdução, antes de qualquer consideração, evidencio que o profissional é um sujeito com sua trajetória pessoal, e que na pandemia faz sua travessia, também a partir deste lugar de humanidade, de modo que pode ser acometido por afetos como medo, terror, tédio, angústia, vivenciando seus lutos com as suspensões de projetos e pela morte de pessoas queridas.

Na escuta clínica no período da pandemia, o afeto que se mostra prevalente é a angústia, de modo que faz pensá-la também vivenciada por psicóloga(o)s. Para a psicanálise, trata-se de um afeto, matriz dos demais estados afetivos, um sentir do sujeito que chega à consciência e está relacionada a uma função: a castração (Freud, 1926/2014).

A angústia afeta, tem caráter desprazeroso, pode se manifestar no corpo. Freud (1926/2014) nos anuncia que pelo seu mecanismo próprio de funcionamento é passível de eclodir em qualquer momento da vida e ainda que seja um retorno de uma vivência primária (ocorrida em fases iniciais do desenvolvimento infantil), ela não encontrará limites cronológicos, possuindo sua própria temporalidade, lançando o sujeito ao desamparo quando surge. Ser acometido por esse afeto é uma experiência sempre solitária, compartilhada somente pela palavra. Sendo o profissional constituído do mesmo material que seus pacientes, se faz necessário considerar que ao ocupar essa outra posição, não está imune em ser invadido pela experiência afetiva angustiante.

Portanto, o que o diferencia dos pacientes? Seu conhecimento técnico? Também, como um dos itens que compõe o posicionamento ético do profissional. Freud (1912/2010b, p. 157) oferecendo orientações aos jovens analistas no que tange à formação, sugere a “análise dos próprios sonhos”, fazendo referência a viver o mesmo processo que oferecerá a seus pacientes, ou seja, submeter-se ao processo de análise com um especialista, de modo que o clínico conte com seu espaço para elaborar seus conteúdos angustiantes.

A formação profissional deve ser complementada com duas outras atitudes: contar com um espaço para supervisionar os casos que acompanha, colocando-se em posição de ser escutado por outro profissional que tenha mais experiência, buscando pontos que permanecem incompreendidos em sua atuação. O terceiro item refere-se a dar continuidade à sua formação com seus estudos articulados aos seus pares. Assim se constitui o tripé de formação de um profissional: análise/terapia pessoal, supervisão e formação teórica (Freud, 1919/2010).

Embora neste trabalho o referencial teórico seja o psicanalítico e não podendo falar do lugar de outras abordagens teóricas, visualizo que a mesma orientação deve abranger a formação do psicólogo clínico. Ao se direcionar para uma técnica de trabalho com seu devido referencial, o profissional não se torna imune de sua própria humanidade e no período da pandemia, como em outros momentos da vida, vive seus afetos e sofre os impactos dos eventos.

Freud faz uma advertência que é importante transcrever:

Mas quem…desdenhou a precaução de analisar a si mesmo, não apenas se vê castigado com a incapacidade de aprender mais que uma certa medida de seus pacientes, corre também um perigo mais sério e que pode se tornar perigo para os outros. Ele facilmente cairá na tentação de projetar sobre a ciência, como teoria de validade geral, aquilo que em obscura percepção ele enxerga das peculiaridades de sua própria pessoa, carreando descrédito… (Freud, 1912b/2010, p. 158).

O alerta freudiano aponta para a formação continuada do profissional da clínica como sendo de extrema importância. Esse profissional vive um trabalho solitário, fechado em seu consultório e, se por um lado encontra uma proteção à exposição ao olhar do outro, por outro, está exposto totalmente ao seu próprio deliberar a respeito de alguma conduta ou trabalho. Deste modo a ética é o que o protege e o ampara nesta jornada!

De acordo com Amendola (2014), docentes, pesquisadores e conselhos têm se preocupado com o crescimento do número de denúncias e penalizações a psicólogos por falta ética, que em sua grande maioria recaem sobre a dificuldade que o profissional apresenta na elaboração de documentos. A autora faz um questionamento quanto aos cursos de formação em Psicologia estarem conseguindo cumprir com o compromisso de formar um profissional com competências e habilidades para atuar no mercado de trabalho.

Esse questionamento continua pertinente. Observamos uma proliferação da oferta de cursos de qualificação, que apresentam discursos sedutores, atraindo muitos profissionais que desejam complementar sua formação. Dentre esses existem aqueles com falsas promessas, de modo que é necessário estar atento à idoneidade dos cursos escolhidos. Por outro lado, é importante que psicóloga(o)s permaneçam engajada(o)s em sua formação, buscando atualizações, agregando conhecimento, articulando-se e dialogando com seus pares, atentos às escolas as quais aderem.

Amendola (2014) evidencia a ética do psicólogo ao se posicionar de forma crítica diante de sua própria atuação, atento para que sua prática não seja opressiva, adestradora ou normativa. Estamos em sintonia com a afirmativa da autora e apontamos o caminho descrito por Freud (1919/2010),  a formação do profissional deve se amparar no trabalho pessoal (análise ou psicoterapia), espaço para supervisionar os casos e escolas para dar continuidade à sua formação teórica.

Uma conclusão para que sigam as reflexões

A pandemia da Covid-19 impôs um cenário de muitas limitações, gerando angústia, medo, terror, renúncia, lutos. A(o) psicóloga (o), em sua condição humana também se vê afetado pela situação social. A angústia comparece intensamente no relato dos pacientes sendo essencial que profissionais se atentem às suas próprias vivências quanto a esse afeto, utilizando-o como motor para trabalho, lembrando que o título de psicóloga(o) não nos defende das dores da vida.

Embora essa atenção deva ocorrer a qualquer tempo, a pandemia impõe outras restrições, limitações e perdas. Apropriar-se desse aspecto é fundamental para psicóloga(o)s, tendo sempre presente a ética que orienta seu trabalho, investindo em seu espaço individual de terapia ou análise, supervisão clínica e espaços para dar continuidade à sua formação teórica.

O vínculo/transferência são dispositivos essenciais para que o processo terapêutico ocorra e seu estabelecimento não trata-se de um processo natural, exigindo do profissional e do paciente investimento. Nos atendimentos através das tecnologias da informação e comunicação, o mesmo também precisa se constituir. A mudança do trabalho presencial para virtual não é possível ser sustentada por alguns pacientes e aqui há um campo aberto para possíveis pesquisas futuras, buscar compreender se o vínculo se altera com essa mudança.

A formação em Psicologia, aqui destaco a psicologia clínica, convoca uma escuta diferenciada frente aos sujeitos que nos procuram em sofrimento. Exige do clínico um compromisso para conduzir, junto dessas pessoas, suas travessias por suas próprias questões, independente do referencial teórico, primando por um trabalho ético e destaco o primeiro artigo do Código[5] Profissional: “o psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

Concluo resgatando o texto de Clarice Lispector que nos evidencia como a dor é um sinalizador para o perigo. Psicóloga(o)s, enquanto sujeitos, podem se utilizar de suas dores como um guia, para investir em uma ética que ampara a conduta profissional e assim auxiliar o outro que lhe busca para fazer sua travessia por suas próprias dores. Fazer deste ofício um trabalho pautado na força do hábito pode ser muito arriscado.

Não esqueçamos que esse é um trabalho extremamente sério e sensível!

Notas
Referências

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Como citar esse texto

APA – Oliveira, L. C. de (2020). Reflexões sobre a atuação do psicólogo clínico a partir da Covid-19. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/reflexoes-sobre-a-atuacao-do-psicologo-clinico-a-partir-da-covid-19.

ABNT – OLIVEIRA, L. C. de (2020). Reflexões sobre a atuação do psicólogo clínico a partir da Covid-19. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/reflexoes-sobre-a-atuacao-do-psicologo-clinico-a-partir-da-covid-19>. Acesso em: __/__/____.