Revista CadernoS de PsicologiaS

Relações entre saúde mental, feminilidades e masculinidades hegemônicas

Jully Annye Gallo Lacerda
Pós-graduada em Sexualidade Humana pela Universidade Positivo

Psicóloga (CRP-08/26058) — E-mail: psijullyannyegallo@gmail.com
Katia Alexsandra dos Santos
Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo - USP

Docente no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Comunitário (PPGDC-UNICENTRO).

#Resenha

Zanello, V. (2020). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Editora Appris.

O livro “Saúde Mental, Gênero e Dispositivos” foi publicado em 2018, e obteve sucesso no ano de 2019 em grupos de feministas na rede social Facebook, devido à intensa identificação de mulheres com os dispositivos descritos. Em 2022 a publicação ganhou uma nova e ampla divulgação, após um estudante de psicologia plagiar os estudos da autora em suas redes sociais, copiando integralmente a frase “homens aprendem a amar muitas coisas e mulheres aprendem a amar os homens”, de autoria de Zanello, a qual foi utilizada para explicar o conceito de dispositivo amoroso, descrito no livro1

Valeska Zanello é psicóloga, doutora em Psicologia Clínica, professora do departamento de Psicologia na Universidade de Brasília, e é pesquisadora da relação entre saúde mental, gênero e interseccionalidade. Seus outros livros são “Saúde mental e gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade”(2014) e “A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações”(2022).

Em seu livro “Saúde Mental, Gênero e Dispositivos”, a autora apresenta extenso arcabouço teórico, utilizando 20 páginas de referências, abordando diversas autoras clássicas do feminismo, por vezes discordando de aspectos de suas teorias. O livro realiza um compilado histórico sobre feminilidades e masculinidades hegemônicas, com reflexões sobre os efeitos da pedagogia afetiva, obras midiáticas e o papel da psiquiatria e a psicologia na medicalização da vivência feminina. Dividido em três partes e oito capítulos, a obra traz informações históricas, científicas e reflexões sobre sua prática clínica, utilizando três conceitos-chave: Dispositivo Amoroso, Dispositivo Materno e Dispositivo de Eficácia. 

O termo Dispositivo origina-se de Foucault, que o descreve em seu livro Microfísica do Poder (1979, p. 244) como “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo”. O autor afirma que são “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles.” (p. 246)

O Dispositivo Amoroso, descrito no livro Saúde Mental, gênero e dispositivos, caracteriza-se como a busca por ser validada e escolhida por um homem, especialmente em relacionamentos afetivos. Não apenas a mulher precisa ser desejável para ser escolhida, mas também é responsável pela manutenção do relacionamento, utilizando-se da cultura do silêncio. O dispositivo amoroso influencia na saúde mental das mulheres, uma vez que o valor delas é medido por olhares masculinos, e seu comportamento esperado é docilidade, emotividade e empatia.

bell hooks2 (2019, p. 34) já escrevia sobre o dispositivo amoroso, embora não utilize esse termo, em 1984, quando diz: “A ideologia da supremacia masculina encoraja as mulheres a acreditarem que não têm qualquer valor e que só obterão valor ao relacionarem-se com os homens ou ao unirem-se a estes.”

O dispositivo materno classifica-se como a normalização do cuidado como instintivo e generificado, exclusivo de mulheres, sendo a dedicação ao outro valorizada na sociedade ocidental como o ideal, especialmente quando o cuidado está atrelado à maternidade. No entanto, quando realizado por uma mulher, o cuidado ao outro é considerado de baixo custo energético, de tempo e financeiro, sendo desvalorizado monetariamente. As mulheres que recusam a realização da dedicação ao outro são classificadas como egoístas e egocêntricas, o que produz um sentimento de culpa. A culpa, inclusive, é identificada como uma constante em relatos sobre a saúde mental feminina. 

Os temas de maternidade compulsória, maternidade científica e economia do cuidado estão em voga, sendo realizadas discussões de âmbito público sobre o cuidado como um trabalho gendrado e invisibilizado, o que é exemplificado nos trabalhos de Moura e Araújo, 2004; Freire, 2016; e Pereira, 2016.

A obra também aborda as masculinidades hegemônicas, nomeando-as como dispositivo de eficácia, destacando a valorização da atividade laboral como autorrealização e a virilidade sexual como objetivo. Zanello aponta que o dispositivo de eficácia é relacional, existindo para se contrapor ao feminino, considerado como inferior. Tornar-se homem é afastar-se intencionalmente de características consideradas femininas, sob pena do julgamento de outros homens. Ao homem, restringem-se os papéis de provedor da família e sexualmente ativo, destacando o desejo sexual como instintivo. O dispositivo de eficácia possui efeitos na saúde mental devido às restrições das ações dos homens por medo de represália, sendo aceitável descontar suas emoções externamente, como por exemplo através do uso de álcool e drogas e por meio da violência. Além disso, afere-se uma valorização da atividade sexual como prova de sua masculinidade, sendo verificada na valorização do tamanho de seu órgão genital, na quantidade de relações e no funcionamento invariável de sua ereção. Nas palavras de Zanello (2018, p. 271): “Ser pai é ser, antes de tudo, trabalhador provedor. Na esfera sexual, firmou-se a ideia de quantidade (de “fodas”, de parceiras etc.), de duração da ereção e, também, de fazer gozar a parceira como coroamento narcisístico do próprio desempenho”.

A escrita se insere em um momento de grande discussão sobre o papel da cultura e da mídia na identidade de gênero, relacionamentos saudáveis, economia do cuidado, maternidade compulsória e científica, e gênero e sexualidade patologizados e medicalizados. Zanello não se propõe a criar inovações dentro dos estudos feministas, pois bebe da fonte de muitas autoras clássicas do feminismo. Dedica-se a agrupar conceitos históricos e científicos, nomeá-los e identificá-los nas obras midiáticas e em práticas clínicas, visando publicizá-los para simpatizantes do feminismo. A autora utiliza-se da máxima “o conhecimento liberta”, destacando que nomear e falar sobre vivências invisibilizadas podem produzir mudanças.

Nesse sentido, o livro cumpre seu papel, no entanto poderia explorar melhor os efeitos dos dispositivos em relacionamentos entre pessoas do mesmo gênero, um tema mencionado de forma rasa dentro do livro. Além disso, a psicóloga se atém a estudar experiências de pessoas cisgênero, não discutindo sobre os efeitos dos dispositivos em pessoas transgênero, sendo uma possibilidade para estudos futuros.

A leitura da obra pode ser útil para psicólogas(os/es) que tenham afinidade com o tema de gênero, feministas e pessoas interessadas na relação da saúde mental e gênero, visto que traz um histórico da psicologia e psiquiatria, e propõe reflexões sobre como o gênero está entrelaçado nas relações sociais. No que concerne à atuação de profissionais da psicologia, em especial, a compreensão do tema pode aprimorar a escuta terapêutica por possibilitar o olhar sobre a construção de gênero, especialmente em contextos de saúde mental, mas configura-se também como importante instrumental no aprimoramento de uma escuta em geral ética e atenta ao atravessamento de gênero. Essa escuta é fundamental em diversos lócus de atuação da psicologia como na saúde, no campo da assistência social, psicoeducação, contextos de trabalho, entre outros.

Notas

[1] O jornal Correio Braziliense realizou uma reportagem sobre o plágio. A reportagem encontra-se nas referências.

[2] O nome bell hooks está grafado propositalmente em letras minúsculas, por ser um pseudônimo de Gloria Watkins, com a intenção de que suas palavras chamem mais atenção do que seu nome.

Referências

Correio Braziliense (2022). “Estudante assume que plagiou textos de masculinidade feitos por professora da UnB”. Recuperado de https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2022/03/4990454-estudante-assume-que-plagiou-textos-de-masculinidade-de-professora-da-unb.html

FREIRE, M.M.L. (2016). Como Criar Filhos: maternidade, ciência e gênero no Brasil nas primeiras décadas do século XX. In: L. R. F. Klanovicz; R. Moreira. (Org.). Estudos de Gênero em Perspectiva. 1a.ed.Ponta Grossa: ANPUH-PR (pp. 45-64).

Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

hooks, b (2019). Teoria feminista: da margem ao centro. Perspectiva: São Paulo.

Moura, S. M. S. R. D., & Araújo, M. D. F. (2004). A maternidade na história e a história dos cuidados maternos. Psicologia: ciência e profissão, 24, 44-55. doi: https://doi.org/10.1590/S1414-98932004000100006 

Pereira, B. C. J. (2016). Economia dos cuidados: marco teórico-conceitual. Recuperado de https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7412/1/RP_Economia_2016.pdf 

Como citar esse texto

ABNT — LACERDA, J. A. G. SANTOS, K. A. Relações entre saúde mental, feminilidades e masculinidades hegemônicas. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/relacoes-entre-saude-mental-feminilidades-e-masculinidades-hegemonicas/Acesso em: __/__/___.

APA — Lacerda, J. A. G. Santos, K. A. (2023). Relações entre saúde mental, feminilidades e masculinidades hegemônicas. CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/relacoes-entre-saude-mental-feminilidades-e-masculinidades-hegemonicas/