Resumo: As relações de cuidado atravessam a condição humana em diferentes níveis. Para pessoas com deficiência, o direito ao cuidado pode trazer implicações no acesso a demais direitos. No Brasil, as estratégias de cuidado são fortemente apoiadas na responsabilização familiar. Este artigo tem como objetivo debater fatores de interseccionalidade que compõem esta responsabilização, evidenciando as questões sociais e econômicas e, assim, abrir uma discussão sobre o papel do Estado e das políticas públicas na assistência aos cuidados e, em consequência, na manutenção dos direitos das pessoas com deficiência. Por fim, conclui sobre a necessidade de análise, por profissionais da Psicologia, quanto às implicações do processo de responsabilização familiar em tais contextos.
Palavras-chave: direito ao cuidado, responsabilização familiar, pessoas com deficiência.
FAMILY RESPONSIBILITY FOR CARING FOR PEOPLE WITH DISABILITIES: SOCIAL AND ECONOMIC IMPLICATIONS
Abstract: Care relationships permeate the human condition at different levels. For people with disabilities, the right to care can bring implications for access to other rights. In Brazil, care strategies are strongly supported by family responsibility. This article aims to debate intersectionality factors that comprise this responsibility, highlighting social and economic issues and, thus, opening a discussion on the role of the State and public policies in assisting care and, consequently, in maintaining the rights of people with disabilities. Finally, it concludes on the need for analysis, by Psychology professionals, regarding the implications of the family responsibility process in such contexts.
Keywords: right to care, family responsibility, people with disabilities.
RESPONSABILIDAD FAMILIAR POR EL CUIDADO DE PERSONAS CON DISCAPACIDAD: IMPLICACIONES SOCIALES Y ECONÓMICAS
Resumen: Las relaciones de cuidado atraviesan la condición humana en diferentes niveles. Para las personas con discapacidad, el derecho a recibir cuidados puede tener implicaciones para el acceso a otros derechos. En Brasil, las estrategias de cuidado están fuertemente sustentadas en la responsabilidad familiar. Este artículo tiene como objetivo debatir los factores de interseccionalidad que configuran esta responsabilidad, resaltando cuestiones sociales y económicas y, así, abriendo una discusión sobre el papel del Estado y las políticas públicas en la prestación de atención y, en consecuencia, el mantenimiento de los derechos de las personas con discapacidad. Finalmente, se concluye sobre la necesidad de un análisis, por parte de los profesionales de la Psicología, sobre las implicaciones del proceso de responsabilidad familiar en tales contextos.
Palabras-clave: derecho a recibir cuidados, responsabilidad familiar, personas con discapacidad.
O presente artigo se propõe a analisar a relação entre as questões sociais e econômicas e os processos de responsabilização familiar no cuidado de pessoas com deficiência. Discussões a respeito dos direitos das pessoas com deficiência são fundamentais para uma sociedade que prevê igualdade e dignidade a todos. No Brasil, a questão dos direitos da pessoa com deficiência assume um papel central na esfera da cidadania e direitos humanos.
A Constituição Federal de 1988 consagrou princípios fundamentais, como a igualdade, dignidade e não discriminação, estabelecendo as bases para a proteção dos direitos humanos de todos os cidadãos. Com valor de emenda constitucional no Brasil, a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Decreto Federal nº 6949/2009), reconhece as pessoas com deficiência como sujeitos de direitos, na promoção do exercício pleno e equitativo de todos seus direitos humanos e liberdades fundamentais. A Lei Brasileira de Inclusão – LBI (Lei nº 13.146/2015) se institui enquanto um marco nacional significativo no avanço dos direitos da pessoa com deficiência no Brasil, assegurando sua plena participação, autonomia e tomada de decisão, com alteração nas concepções legais de capacidade civil até então vigentes. Essa legislação abrange áreas fundamentais da vida, como educação, trabalho, saúde, acessibilidade, transporte e cultura.
A categoria cuidado é parte essencial no debate sobre direitos humanos. As relações de dependência são constituintes da condição humana e inevitáveis à vida social, sendo o cuidado basilar para a sobrevivência das pessoas, de forma individual e em sociedade. Para pessoas com demandas mais evidentes de suporte, o direito ao cuidado pode se configurar como meio para efetivação de seus demais direitos, incluindo o direito à vida, à saúde e à dignidade. Neste sentido, estudos feministas da deficiência debatem, desde a década de 1980, sobre a importância do reconhecimento do valor do trabalho do cuidado e questionam os ideais de autonomia e independência (Fietz & Mello, 2018), que, por vezes tidos como universais e absolutos, são fortemente baseados em pressupostos positivistas de racionalidade e individualidade.
A definição — e, portanto, o reconhecimento — do papel do cuidador, na legislação existente, é desafiadora e pouco precisa. Na LBI, o mais próximo da figura do cuidador que aparece é o conceito de “atendente pessoal”, que se define, no Artigo 3°, Item XII como: “atendente pessoal: pessoa, membro ou não da família, que, com ou sem remuneração, assiste ou presta cuidados básicos e essenciais à pessoa com deficiência no exercício de suas atividades diárias, excluídas as técnicas ou os procedimentos identificados com profissões legalmente estabelecidas”. Ou seja, uma definição vaga e pouco precisa do que é um cuidador, do que são os “cuidados básicos e essenciais” e suas funções (Santos, 2023).
Ainda, Santos (2023) afirma que, no texto da LBI, “a figura do cuidador é apresentada apenas de forma análoga ou acessória, como se o cuidador fosse apenas mais uma ferramenta ou auxílio como as outras tantas necessárias para o pleno exercício da autonomia por parte da pessoa com deficiência” (p. 16). Sendo assim, é possível constatar que na legislação não é encontrado o amparo necessário ao cuidador da pessoa com deficiência, especialmente quando se trata de um cuidador familiar, ou seja, um membro da família que presta os cuidados básicos e essenciais à pessoa com deficiência.
Cabe notar que no Artigo 8° da LBI, consta que:
É dever do Estado, da sociedade e da família [destaques nossos] assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde… entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.
No entanto, no cotidiano dessas pessoas, o dever não é devidamente compartilhado entre os membros da comunidade nem do Estado, recaindo a responsabilidade quase que inteiramente sobre a própria pessoa com deficiência e o seu cuidador. Dessa forma, cabe à família, muitas vezes desamparada, suprir a defasagem institucional do suporte à pessoa com deficiência (Hayar, 2015).
Passos e Machado (2021) analisam as tipologias de regimes de cuidado, com objetivo de identificar as linhas gerais que caracterizam o regime brasileiro. As autoras pontuam o papel basilar do cuidado nas relações sociais e na provisão de proteção social, especialmente o papel das mulheres nesse contexto. Ainda, concluem que o Brasil adota uma política de cuidados fortemente apoiado na família, conhecido como familismo, onde a família é colocada como o centro do cuidado e protagoniza a responsabilidade pelo bem-estar de seus integrantes. A presença dessa ideologia nas políticas públicas restringe o cuidado ao âmbito privado e reduz o papel do Estado como responsável pela proteção social da sua população, pois nesse sistema julga-se que a intervenção do Estado se faz necessária apenas em situações extremas nas quais a esfera privada não consegue oferecer o cuidado.
O familismo e o capacitismo beneficiam políticas neoliberais, sistema no qual a eficiência do mercado é colocada como principal solução para problemas sociais que anteriormente eram considerados de encargo público e do Estado. Segundo Gesser, Zirbel e Luiz (2022), no Brasil esse sistema está fortemente ligado às políticas públicas, pois historicamente as práticas de caridade e a instituição familiar estão atreladas à manutenção da seguridade social. As autoras apontam problemáticas para esse deslocamento da responsabilidade para a família e para o mercado, pois esta transferência em transversalidade com outras estruturas sociais como o patriarcado, o racismo, a classe econômica, etc., acentua a desigualdade social dentro e fora da família. Como afirma Schwengber (2016, p. 17): “A mínima interferência governamental coloca a família em situação de maior fragilidade e dificuldade, pois grandes responsabilidades que são transferidas para a família, ela não consegue responder por diversos fatores”.
A partir disso, este trabalho tem como objetivo apresentar e discutir os fatores que compõem a responsabilização familiar nos cuidados à pessoa com deficiência. Para isso serão apontadas as interseccionalidades que atravessam essa responsabilização e que podem acentuar as vulnerabilidades enfrentadas pelas pessoas com deficiência e seus cuidadores. Tais apontamentos serão discutidos a partir de um caso específico que será aqui apresentado para ilustrar as questões expressas, a fim de abrir o debate sobre o papel do Estado e das políticas públicas na assistência aos cuidados da pessoa com deficiência.
Ao estudar configurações sociais complexas e suas implicações para a subjetividade, há de se levar em conta o conceito de interseccionalidade. A interseccionalidade diz respeito ao estudo da forma como conectores sociais têm efeito na construção da subjetividade de determinado sujeito e sua inserção na sociedade. Na obra de Patricia Hill Collins (2015), encontramos a seguinte definição para tal conceito:
O termo interseccionalidade faz referência à visão crítica de que raça, classe, gênero, sexualidade, etnia, nacionalidade, deficiência e idade operam não como entidades unitárias e mutuamente exclusivas, mas como fenômenos que se constroem reciprocamente, que, por sua vez, moldam desigualdades sociais complexas (p. 2, tradução livre nossa).
Como apontam Moreira e Del Mouro (2021, p. 5): “a associação da deficiência com outros conectores sociais como raça, gênero e classe social, entre outros, pode potencializar processos de opressão, vulnerabilidade, desigualdade social e exclusão a esse coletivo”. Dessa forma, cabe aqui analisarmos como esses conectores sociais atuam de forma interseccional, objetivando uma compreensão mais completa do fenômeno das vivências de opressão e exclusão social enfrentadas pela pessoa com deficiência e seus familiares/cuidadores.
Ao analisarmos os conectores sociais que envolvem o desamparo à pessoa com deficiência e o direito ao cuidado, é necessário olharmos para o gênero das pessoas responsáveis pelo cuidado, que são, na grande maioria das vezes, as mulheres. No estudo das relações de gênero, encontramos o papel da mulher majoritariamente associado às atividades de cuidado, encarregadas do cuidado de si, de crianças, familiares com deficiência, idosos e até mesmo dos homens adultos de sua família (Silva & Parrião, 2020). Ao falar sobre os papéis de cuidado em nossa sociedade, Gesser et al. (2022) trazem os modelos de mulher-cuidadora e, em contraste, o do homem-independente ou autônomo, onde o modelo tido como feminino é voltado para atividades de cuidado e manutenção de vida diária, enquanto o masculino, em uma postura individualista, é voltado para o “mundo das ideias” e “gerenciamento”. Necessariamente, o modelo homem-independente carrega uma série de dependências inevitáveis, supridos pelo da mulher-cuidadora. As autoras apontam que a expectativa social de que o trabalho do cuidado seja realizado predominantemente por mulheres torna-o um trabalho solitário e sem amparo, além de dificultar a politização do cuidado na esfera pública e coletiva (Gesser et al., 2022).
No que diz respeito a raça, Engel e Pereira (2015) estruturam o papel da raça na organização social e divisão de trabalho, mais especificamente da mulher negra. Não é possível abordar as problemáticas na estrutura do cuidado sem apontar que mulheres negras têm suas subjetividades constituídas em meio a relações de subserviência. Como pontuam essas autoras, a inserção desigual da população negra e feminina no mercado de trabalho, no trabalho doméstico e de cuidado são “resultados de dinâmicas e construtos simbólicos, políticos e econômicos que são coletivamente articulados e partilhados” (Engel & Pereira, 2015, p. 15), vinculando raça (e gênero) às tarefas cotidianas de cuidado e manutenção do lar.
As intersecções de gênero e raça atuam como agravantes na realidade econômica enfrentada pelas famílias. Mulheres negras, em destaque, são o grupo que apresenta o menor rendimento, menores níveis salariais e maior índice de pobreza, mesmo quando considerada a mesma faixa de escolaridade (Paixão et al., 2011 citado por Engel & Pereira, 2015).
Outra questão de interseccionalidade em relação aos cuidados da pessoa com deficiência é a idade dos cuidadores, os quais muitas vezes já são idosos e também apresentam certo grau de dependência. Esse cenário é comum, no caso de pessoas com deficiência adultas, pois o aumento da longevidade da população em geral acarreta no envelhecimento mútuo da pessoa com deficiência e do seu cuidador. A legislação brasileira (Lei No 10.741/2003) assegura ao idoso os seus direitos, porém muitas vezes estes acabam violados devido à necessidade de assumir responsabilidades nos cuidados de um familiar com deficiência. Segundo Falcão, de Britto e Dias (2021), a combinação das fragilidades consequentes da idade avançada do cuidador e as demandas de cuidado da pessoa com deficiência aumenta o grau de vulnerabilidade das partes envolvidas, já que o cuidador idoso muitas vezes não tem condições de oferecer a assistência adequada.
A vulnerabilidade socioeconômica é a principal problemática na responsabilização familiar, no sentido em que esta questão se relaciona com todas as demais e acentua os fatores de vulnerabilidade; na organização social do cuidado, classes médias e altas encontram como principal saída a contratação de classes baixas – empregadas domésticas, babás e cuidadoras. Engel e Pereira (2015, p. 8) apresentam os dados:
Dados sugerem que as classes altas e médias são “as mais cuidadas” no Brasil. Bila Sorj e Adriana Fontes (2012) divulgam, com base nos dados da POF 2008-2009, que as classes altas contam com auxílio externo para a manutenção de atividades de cuidado com a casa e com as pessoas em uma porcentagem alta dos casos: 51.7% dos lares de renda mais alta gastam com a contratação de terceiros, número que aumenta para 73% no caso de famílias com filhos menores de 6 anos. Em comparação, nos lares de menor renda essa opção é quase inexistente: a porcentagem reduz-se para 2,2% e tem um aumento para 2,4% no caso de famílias com filhos menores de 6 anos.
Ao pensarmos na intersecção entre deficiência e classe social, constata-se que pessoas com deficiência e seus familiares estão entre os com maiores riscos de viver em situação de pobreza, em especial nos países em desenvolvimento e com exclusão social de determinados grupos, como é o caso do Brasil (Cavalcante et al., 2009; Moreira & Del Mouro, 2021).
Ainda, Moreira e Del Mouro (2021) apontam que a pobreza, além de gerar vulnerabilidades “também impõe uma condição limitante que impossibilita às famílias de utilizar e acessar os recursos e serviços públicos, dado à falta de condições que lhe são impostas, pela desigualdade social, de conhecer seus direitos” (p. 10).
O caso de Carlos
Para ilustrar as inquietações teóricas contidas no presente artigo, apresentaremos um caso atendido no setor de Atendimento Psicossocial no Departamento dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Prefeitura de Curitiba, onde os autores atuam como estagiários. No caso em questão os nomes foram alterados para proteger o sigilo dos envolvidos.
Carlos, um homem de aproximadamente 40 anos com deficiência de nível 3 de cuidado, requer atenção integral devido à falta de mobilidade, uso de fraldas e comprometimento intelectual e da fala. Sua deficiência ocorreu após uma agressão física grave na vida adulta, o que levou sua irmã, Ana, a renunciar ao emprego para cuidar dele, o que resultou em profunda depressão e crises de enxaqueca para ela. Devido a dificuldades financeiras, o pai de Carlos, um senhor aposentado de aproximadamente 80 anos, se inseriu em uma vaga de trabalho informal, porém por conta de uma cirurgia de hérnia de disco teve que parar de trabalhar e não conseguiu mais auxiliar nos cuidados do filho. Outros familiares auxiliaram temporariamente, incluindo um irmão e uma sobrinha que era paga com doações.
A família buscava acolhimento temporário para Carlos para melhorar sua situação financeira e a saúde dos cuidadores. No entanto, a política de assistência social verificou que Carlos não possuía perfil para o acolhimento institucional devido à existência de vínculos familiares e ao seu alto nível de dependência. Foi sugerido que a família usasse o Benefício de Prestação Continuada (BPC) de Carlos para contratação de um cuidador, mas o benefício foi negado pelo INSS devido à renda familiar, proveniente da aposentadoria do pai. Devido às especificidades dos cuidados de saúde, foi pleiteada vaga em leito hospitalar para Carlos, porém a política de saúde verificou que este senhor não possuía uma demanda específica para tratamento hospitalar. Sua fisioterapia foi interrompida pelas restrições sanitárias no período de pandemia da Covid-19, resultando em uma deterioração adicional da mobilidade. Infelizmente, Carlos veio a falecer devido a complicações em seu estado de saúde.
O cuidador familiar pode ser caracterizado como um cuidador informal da pessoa com deficiência (Pera, 2000; Gil et al., 2009; Oliveira, 2021), ou seja, como aquele encarregado de ajudar, sem remuneração e durante a maior parte do dia, uma pessoa em suas necessidades básicas (Oliveira, 2021). Assim, somando-se ao papel de mãe, pai, irmão, tios, avós, a responsabilidade de cuidador, sem o devido amparo institucional/comunitário, sem o acesso a recursos financeiros que possibilitem a contratação, por exemplo, de um cuidador profissional, pode-se observar, para além de uma sobrecarga de trabalho ao cuidador familiar, também um distanciamento e isolamento social deste – como observado na realidade da irmã de Carlos.
Oliveira (2021) alerta que o fenômeno da sobrecarga de trabalho do cuidador é um fenômeno multidimensional, onde o bem-estar, tanto do cuidador, quanto da pessoa com deficiência, são afetados. Tal sobrecarga gera um aumento da tensão sobre o cuidador, e poderá acarretar em desgaste físico, psicológico e imunológico, além de dificuldade nas relações familiares e na participação social (Hayar, 2015; Oliveira, 2021; Santos, 2023). No caso estudado no presente artigo, Ana é um exemplo concreto da sobrecarga enfrentada pelos cuidadores e dos impactos consequentes. A sua transição para o papel de cuidadora principal implicou em mudanças significativas na sua vida, incluindo a alteração na dinâmica de sua relação com o irmão, que se tornou pessoa com deficiência na idade adulta, bem como a mudança em seu status social em relação ao emprego. A soma dessas demandas levou a consequências significativas para a sua saúde mental, manifestadas na forma de depressão e crises de enxaqueca.
Diante da complexidade destas relações, casos como o de Carlos chegam com demandas iniciais direcionadas ao acolhimento institucional provisório, como forma de superação da evidente sobrecarga familiar. A medida de acolhimento, em si, é permeada por contradições e dilemas; sendo uma medida de último recurso na proteção social, aplicada quando esgotadas todas as alternativas e tentativas de manutenção do ambiente familiar. Tal estratégia implica, em si, em uma violação de direitos, pois afeta o direito fundamental à convivência familiar e comunitária. Contudo, mesmo em frente a essa realidade, o acolhimento é frequentemente usado enquanto estratégia, em resposta à carência de políticas de cuidado mais específicas e apropriadas – especialmente quando a avaliação social identifica a fragilidade familiar em desempenhar o papel de garantir os direitos. E, apesar de tudo, no caso de Carlos, a medida de acolhimento revelou-se ineficaz, uma vez que não haveriam instituições de acolhimento que atendessem à alta demanda de cuidados necessários, devido à complexidade de suas questões de saúde. É importante resgatar as intersecções previamente mencionadas neste artigo para pontuar seus atravessamentos neste caso.
A sobrecarga experimentada por Ana é atravessada pela naturalização do papel de mulher-cuidadora – o papel da mulher majoritariamente associado ao cuidado, mesmo que em detrimento de sua vida profissional e financeira; uma vez apresentada a necessidade da família assumir os cuidados, é a irmã que assume o papel de maior responsabilidade, perpetuando esse padrão. Uma vez que Ana teve de deixar seu emprego para cuidar do irmão, que agora depende dela para suas necessidades diárias, a família enfrenta implicações financeiras significativas, com a renda familiar sendo o Benefício de Prestação Continuada de Carlos, em uma relação de dependência mútua.
Coutinho (2011) aponta que os estudos realizados com cuidadores de pessoas com deficiência encontram características sociodemográficas e econômicas similares: mulheres com algum grau de parentesco com a pessoa assistida, e com baixo nível escolar e socioeconômico. Tais pesquisas apontam maior sobrecarga na dimensão de tensão dos cuidadores devido grau de enfrentamento dos problemas, a aquisição de responsabilidades, a vontade de deixar toda a situação atual de lado, o cansaço e esgotamentos gerados, a falta de tempo em cuidar de si e os prejuízos gerados à própria saúde em razão do cuidar.
A violação de direitos envolvida na situação é ainda mais agravada quando é considerado o fato de que o pai de Carlos, enquanto idoso, também se encontra com direitos violados, tendo que retornar ao trabalho, de maneira informal, e agravando ainda mais os seus problemas de saúde. Ser responsável pelos cuidados de uma pessoa com deficiência é uma tarefa que muitas vezes envolve disponibilidade física e mental, no entanto o envelhecimento mútuo das partes envolvidas nessa equação gera desafios que precisam de atenção. O cuidador idoso é também um indivíduo que demanda de cuidado, pois muitas vezes apresenta desgaste físico e mental em consequência da idade avançada, e, conforme aponta Hayar (2015) um idoso cuidando de outro idoso pode acarretar em um cenário de dupla vulnerabilidade, como no caso de Carlos, que apesar de não ser idoso, dependia de cuidados constantes, e seu pai, de 80 anos.
Mioto (2012) aponta que a responsabilização familiar surge como resposta aos espaços deixados na relação entre a redistribuição de recursos das políticas sociais, a alocação dos serviços nos territórios e a qualidade desses serviços ofertados: onde a proteção social, que constitui o cerne das políticas sociais, falha em atingir seu objetivo, a incumbência do cuidado é transferida ou imposta para as famílias. A incongruência dessa relação é evidenciado em casos como o de Carlos, onde a desigualdade social atua como fator crucial, uma vez que famílias que não se encontram nas mesmas condições materiais e culturais enfrentam possibilidades desiguais de usufruírem dos serviços (Mioto, 2012). O fato da família não poder arcar com os custos de um cuidador (estratégia adotada por famílias com maior acesso a recursos financeiros) é um exemplo do agravo da vulnerabilidade e desproteção social frente a associação de pobreza e deficiência.
Este artigo teve como objetivo analisar a complexa relação entre as dimensões sociais e econômicas e os processos de responsabilização familiar na garantia de direitos de pessoas com deficiência. Embora a legislação brasileira estabeleça bases para a proteção de tais direitos, com princípios de igualdade e dignidade, a realidade vivenciada por muitos revelam as lacunas e desafios na implementação efetiva desses direitos.
O cuidado é uma dimensão fundamental dos direitos humanos, e deve ser encarado como tal, desvinculado do mercado e da renda. Trata-se de um direito que não deveria estar sujeito a variações decorrentes de circunstâncias individuais, sendo impactado por transformações na organização, gestão e estrutura familiar.
Importante ressaltar que a terceirização do cuidado, ou seja, a contratação de pessoas externas à família para prestação do cuidado à pessoa com deficiência, não é considerada como ausência ou omissão familiar, pelo contrário, é tida como estratégia legítima de oferta de amparo. Desta maneira, evidencia-se o recorte do poder aquisitivo na delimitação da omissão, uma vez que a terceirização do cuidado em ambiente familiar se efetiva apenas por meio de serviços privados, na ausência de uma política pública que se equipare. Marçal et al. (2020) alertam que “a imposição dos custos do cuidado às famílias tem sido realizada independentemente das condições que ela tenha de cumprir com essa tarefa” (p. 7), de forma que, na ausência de serviços gratuitos para prestação de cuidados, a responsabilização familiar fica submetida a um recorte de classe.
É crucial o questionamento da abordagem adotada pelo Estado que, mesmo frente a inadequação das políticas, coloca a família no centro da provisão de recursos e cuidados e espera o momento em que a situação se torne insustentável para intervir – responsabilizando a família sem um suporte efetivo. Costa, Angelucci e Rosa (2022, p. 519) pontuam:
A ausência de políticas públicas de cuidado explicita uma decisão política. Não se trata de campo impensado, ausência de demanda social ou mesmo de inexistência de experiências públicas; trata-se de decisão política de manter o cuidado na esfera da pessoalidade ou, no máximo, da filantropia.
Construir políticas de cuidado eficazes é uma maneira de romper com o paradigma do familismo, retirando o Estado de seu papel secundário. A responsabilização familiar, como fundamentado e exemplificado neste artigo, não representa uma resposta efetiva às necessidades existentes. O desenvolvimento de políticas públicas de cuidado devem objetivar a promoção do bem-estar, proteção e dignidade a todos, independentemente de seus corpos, classe social, raça/etnia ou gênero, com o Estado assumindo sua responsabilidade nessa garantia.
A responsabilização familiar, somada à ausência de oferta de estratégias públicas sistemáticas de apoio cotidiano às necessidades de suporte, pode contribuir para a fragilização de uma situação familiar já em vulnerabilidade devido à sobrecarga nas atividades de cuidado. E, neste processo, quanto mais fragilizada a dinâmica familiar, mais implicações poderão ser percebidas no acesso à direitos, de forma geral, para as pessoas com deficiência com necessidades específicas de cuidado. Desta maneira, profissionais da Psicologia precisam analisar as implicações de tais processos e promover formas éticas e responsáveis de orientar e convocar a família a seu legítimo lugar enquanto uma das partes envolvidas em assegurar a efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, sem fazer, com sua atuação, pesar sobre ela as responsabilidades das quais se ausentam Estado e sociedade.
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ABNT — CHAGAS, R. E., MELLO, G. R., PENTEADO, L. C. A., SILVA, R. B. T., PRIMO, F. C. P. Responsabilização familiar no cuidado de pessoas com deficiência: implicações sociais e econômicas. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/responsabilizacao-familiar-no-cuidado-de-pessoas-com-deficiencia-implicacoes-sociais-e-economicas/. Acesso em: __/__/___.
APA — Chagas, R. E., Mello, G. R., Penteado, L. C. A., Silva, R. B. T., Primo, F. C. P. (2023). Responsabilização familiar no cuidado de pessoas com deficiência: implicações sociais e econômicas. CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/responsabilizacao-familiar-no-cuidado-de-pessoas-com-deficiencia-implicacoes-sociais-e-economicas/