“Lavar o rosto, nas águas sagradas da pia”, com bem diz os Racionais MC’s, tem sido a rotina de muitos de nós, e aqui falo como uma mulher, jovem, da classe trabalhadora e que vem tornando-se negra em meio a imensidão de estratégias racistas e opressoras que roubam de nós a consciência de nossos direitos e do nosso pertencimento social e racial.
A ideia de que correr atrás e ter coragem basta para viver uma vida minimamente confortável em nosso mundo, (aqui me referindo ao que é direito nosso enquanto humanos), ultrapassa a real compreensão da formação da consciência de todos nós, que é em sua essência, social e cultural, ninguém se faz humano, sem condições, sem outras pessoas e sem oportunidades adequadas. O sistema social que vivemos, competitivo e produtivo, no sentido explorador, é intencionalmente perverso! O neoliberalismo se impõe desde as oportunidades de estudo, até a falta delas, nas falta de políticas públicas, ações afirmativas, nas redes sociais, que reforçam o paradigma da autonomia, da eficiência, da competitividade, e que contribuem para colocação/demarcação da barreira real e concreta, que vem sendo construída a séculos, impedindo o acesso à comida, a moradia, ao lazer, à escola, o direito à vida, como sendo apenas uma questão de esforço em maior ou menor grau… E não, não é sobre suas faltas e investimentos individuais!
Hoje, em 2023, reconheço as oportunidades e direitos que demarcam a realidade que vivencio em relação a realidade de muitos pares, formada em Psicologia, após muitas durezas que ainda são existentes, e sendo a primeira parte da minha família a acessar esse espaço de formação, me deparo com abismo que se solidifica em nossas vivências.
Espaços como este aqui, que acolhem palavras, inquietações e trabalhos importantes e potentes, são geradores de união e formação de uma coletividade atenta e crítica, me recorda Débora Noal, em O Humano do Mundo, ao dizer, “Acorda, humanidade!”. Acordar é viver, mas viver dando/respeitando/validando/reconhecendo o espaço de fala, como aqui lendo o outro, estando junto, dentre os estilhaços que formam cada um de nós… Precisamos juntos acordar e recordar nossa história!
Comecei esse escrito mencionando o meu processo de “tornar-me negra”, Neusa Santos Souza, afirmava ser um processo social e que se constitui à medida que nos identificamos e reconhecemos dentro da nossa história, experiências, e da nossa ancestralidade, o nosso pertencimento racial, as possibilidades e impossibilidades que nos deparamos na vida. Assim tem sido, um processo vagaroso, denso, doloroso, libertador e que se enriquece quando longe da minha terra de origem, escrevo um estilhaço de vida, da minha história, junto a outras potentes Vozes Negras da Psicologia.
Uma criança, que sempre quis ser jornalista, poder falar aos ventos, enfrentar o mundo com a palavra, anos depois, ingressando no trabalho aos 13 anos, se enxerga pequena, diminuída, reduzida a falas duras e preconceituosas. Entre as tantas lutas que não pararam, e longe de romantizá-las, reforço a necessidade de espaço de fala, e de reconhecimento das nossas vozes, que possamos falar e falar juntos, a todos os ventos, na Psicologia e fora dela.
Os nãos quase sempre vem carregados de justificativa, uns fazem-nos confundir preconceitos e racismo com falsa interpretação, dizem, “é brincadeira”, ou, fazem de tudo para te mostrar que a opinião deles é a melhor, que suas conquistas e seu desenvolvimento poderiam ser melhores, nunca está bom! E como se houvesse dever de gratidão, e não, falta de reconhecimento e espaço, Maryse Condé diz em Eu Tituba – A Bruxa Negra de Salém:
Eu urrava, e, quanto mais eu urrava, mais eu tinha o desejo de urrar. De urrar meu sofrimento, minha revolta, minha raiva impotente. Que mundo era aquele que tinha feito de mim uma escravizada, uma órfã, uma pária? Que mundo era aquele que me separava dos meus? Que me obrigava a viver entre pessoas que não falavam a minha língua, que não compartilhavam a minha religião, num país feio, nada agradável? (Condé, 2019, p. 82).
E sabemos da realidade, a inegável dimensão do racismo estrutural, e sua expressão nos diversos espaços sociais, que amortecem as vozes, e intentam tirar de nós os espaços que há séculos são negados ou distanciados de nossas possibilidades, o cansaço e as dores da luta contra essas estruturas, entretanto, não é questão apenas de nós deixar falar, mas sim, considerar e manter em relevo o eco das nossas vozes! Sigamos juntes.
Eu sou Jenifer Cristina Teixeira de Almeida (CRP-04/61933), uma mulher negra, de 25 anos, nascida na zona rural de Uberlândia-MG, atualmente se aventurando por terras Maringaenses. Sou mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, pesquiso desenvolvimento psíquico infantil a partir da Psicologia Histórico-Cultural e os processos de medicalização da vida e da educação, sempre buscando promover práticas Desmedicalizantes. Atuo como psicóloga clínica, partilho recortes do meu trabalho na rede @movimentarrecriar. Atuo no coletivo de mulheres Projeto EscutArte desde 2021, e sou apaixonada por literatura, faço a mediação e coordenação de encontros no clube do livro Leituras Delas criado e construído por e para mulheres, almejando construir reflexões e ações coletivas e potencializar as vozes e fazeres das escritoras que compõe a trajetória literária da nossa sociedade. (Meu contato: jeniferalmeidapsico@gmail.com)
Referências
Condé, M. (2019). Eu, Tituba Bruxa Negra de Salem (Polesso, N. B., trad.). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.
Noal, D. (2017). O humano do mundo: diário de uma psicóloga sem fronteiras. São Paulo: Alto Astral.
Racionais, M. (2002). Jesus Chorou. Nada Como um Dia Após o Outro Dia, Vol. 1 & 2. São Paulo: Casa Nostra.
Sousa, N. S. (1983). Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal.
ABNT — ALMEIDA, J. C. T. Ressaltando os ecos das nossas vozes e fazeres: por uma Psicologia atenta, crítica e antirracista. CadernoS de PsicologiaS, n. 5, 2023. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/ressaltando-os-ecos-das-nossas-vozes-e-fazeres-por-uma-psicologia-atenta-critica-e-antirracista/. Acesso em: __/__/_____
APA — Almeida, J. C. T. (2023). Ressaltando os ecos das nossas vozes e fazeres: por uma Psicologia atenta, crítica e antirracista. CadernoS de PsicologiaS, 5. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/ressaltando-os-ecos-das-nossas-vozes-e-fazeres-por-uma-psicologia-atenta-critica-e-antirracista/