Revista CadernoS de PsicologiaS

Saúde Mental e trabalho em tempos de Covid-19:
atuações da Psicologia

Aline Pinto Guedes
Centro Estadual de Saúde do Trabalhador (CEST/DAV/SESA)

Psicóloga (CRP-08/10219). E-mails: aline_pguedes@hotmail.com; aline.guedes@sesa.pr.gov.br
Andressa Roveda
Psicóloga (CRP-08/08990). E-mail: andressa_roveda@hotmail.com
Carolina Franco de Oliveira Simeão
Psicóloga (CRP 08/31130). E-mail: carolinasimeao@outlook.com
Camila Brüning
Departamento de Psicologia - UFPR

Psicóloga (CRP-08/11564). E-mails: camila.bruning@gmail.com; camila.bruning@ufpr.br
Elaine Cristina Schmitt Ragnini
Departamento de Psicologia - UFPR

Psicóloga (CRP-08/08045). E-mails: elaineschmitt@hotmail.com; elaine@ufpr.br
Fernanda da Conceição Zanin
Psicóloga (CRP-08/15746). E-mail: ferczanin@gmail.com
Janaína de Azevedo Leão Rêgo
Psicóloga (CRP-08/12894). E-mail: janaina.d.azevedo@gmail.com
#Relatos_de_Experiência

Resumo: A pandemia da Covid-19 traz alguns desafios para a atuação da Psicologia no campo da saúde mental e do trabalho. A crise sanitária tem efeitos sobre as regulamentações do trabalho, sua organização e as formas individuais e coletivas de vivenciá-lo. Em serviços públicos e privados, temos identificado casos de sofrimento e adoecimento mental que se referem ao trabalho no contexto da pandemia. A partir desses casos, alguns profissionais da Psicologia têm se dedicado a construir estratégias de intervenção sobre a problemática. Este artigo é o relato da experiência de um grupo de trabalho sobre saúde mental e trabalho na pandemia, e tem por objetivo refletir, do ponto de vista da Psicologia, sobre a prática profissional e os compromissos éticos que a pandemia nos impõe.

Palavras-chave: saúde mental e trabalho; Psicologia; pandemia da Covid-19.

Mental Health and work in Covid-19 times: Psychology’s actions

Abstract: The Covid-19 pandemic brings some challenges to Psychology’s performance in the field of mental health and work. The health crisis has effects on labor regulations, its organization and individual and collective ways of experiencing it. In public and private services, we have identified cases of suffering and mental illness that refer to work in the context of the pandemic. From these cases, some Psychology professionals have been dedicated to building intervention strategies on the problem. This article is the account of the experience of a working group on mental health and work in the pandemic, and aims to reflect, from the point of view of Psychology, on professional practice and the ethical commitments that the pandemic imposes on us.

Keywords: mental health and work; Psychology; Covid-19 pandemic.

Salud Mental y trabajo en tiempos de Covid-19: acciones de la Psicologia

Resumen: La pandemia de Covid-19 ha planteado algunos desafíos para el trabajo de la Psicología en el campo de la salud mental y del trabajo. La crisis de salud tiene efectos sobre la normativa laboral, su organización y las formas individuales y colectivas de vivirla. En los servicios públicos y privados, hemos identificado casos de sufrimiento y enfermedad mental involucrados al trabajo en el contexto de la pandemia. A partir de estos casos, algunos profesionales de la Psicología se han dedicado a construir estrategias de intervención sobre el problema. Este artículo reporta la experiencia de un grupo de trabajo acerca de salud mental y trabajo en la pandemia, y tiene como objetivo reflexionar, desde el punto de vista de la Psicología, a respecto de la práctica profesional y de los compromisos éticos que se le impone la pandemia.

Palabras clave: salud mental y trabajo; Psicología; Pandemia de COVID-19.

A pandemia da Covid-19, decretada pela Organização Mundial da Saúde no dia 11 de março de 2020, tem afetado diversos aspectos da vida da população em geral, que vão da rotina com os cuidados da saúde à forma de se organizar para viver e trabalhar. Trata-se de uma crise sanitária que tem dimensões sociais, políticas, jurídicas, econômicas e psíquicas, exigindo a (re)construção de lugares na cena social que implicam cada indivíduo a partir de sua singularidade e de suas relações. Nesse cenário, os trabalhadores têm sofrido as consequências da pandemia: são novos espaços e tempos; novas exigências físicas, sociais, cognitivas e psíquicas; novos arranjos contratuais; novas demandas de atuação.

No que tange à interface com o mundo do trabalho, a Psicologia é uma ciência e profissão que é chamada a responder de diferentes lugares éticos e epistemológicos, demarcando posições nessa interface – da Psicologia organizacional, do trabalho, da Psicologia crítica do trabalho, da saúde do trabalhador. Ainda, a depender do lugar institucional de atuação, o psicólogo que se dedica às inter-relações entre trabalho e comportamento, subjetividade e saúde, terá que responder de variadas formas. Se a compreensão das relações que se estabelecem entre a saúde/doença psíquica e a atividade profissional já é um evento dinâmico pela natureza dos fatos envolvidos, debruçar-se sobre essas relações no contexto da pandemia da Covid-19 tem sido um grande desafio.

Como aporte conceitual para a compreensão do que seja a saúde mental na relação com o trabalho, entendemos que tal interface envolve “aspectos da organização, processo e condições de trabalho, a compreensão da vivência subjetiva no trabalho e as complexas interações com o aparelho psíquico humano (…) assim repercutindo, de uma forma positiva ou negativa, sobre a saúde mental dos trabalhadores” (CFP, 2019, p. 14). A proposta deste artigo é trazer o relato de experiência de psicólogas que participam de um Grupo de Trabalho (GT) e discussão interinstitucional sobre a saúde mental e o trabalho em tempos de Covid-19. Nesse grupo, objetiva-se analisar: (a) os cenários de trabalho na pandemia; (b) os casos de adoecimento relacionados ao contexto profissional, com foco no sofrimento psíquico e no adoecimento mental; (c) as estratégias de atuação e intervenção frente aos casos de sofrimento e adoecimento; (d) orientações aos profissionais da Psicologia para a atuação em saúde mental e trabalho na pandemia.

Desde o final do ano de 2019, o Centro Estadual de Saúde do Trabalhador (CEST/DAV/SESA) articula o Grupo de Trabalho (GT) técnico com diversos atores interessados na discussão, intervenção e orientações sobre a saúde mental dos trabalhadores. De acordo com as Portarias MS nº 777, de 2004, e nº 204 e 205, de 2016, os Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho (TMRT) compõem um dos 11 agravos de notificação compulsória que precisam ser monitorados por estratégias de vigilância em saúde. Diante disso, o objetivo disparador desse grupo de trabalho foi contribuir para a organização da Saúde Mental do Trabalhador no Paraná, por meio da articulação intra e intersetorial, do fortalecimento do trabalho em rede, com ações voltadas à construção de um fluxo de atenção e notificação dos sofrimentos mentais dos trabalhadores.

Em maio de 2020, já em plena crise sanitária, o GT reconfigurou-se como GT – Saúde Mental e Trabalho na Pandemia, ampliando a participação para outras instituições. Durante os meses que se seguiram, participaram do GT diversos profissionais das áreas da Psicologia, Assistência Social, Medicina, Farmácia, Educação, Enfermagem, representando 14 instituições diferentes, entre elas setores da saúde pública, conselhos de classe profissional, universidade, Ministério Público do Trabalho, sindicatos e representantes da sociedade civil organizada (como, por exemplo, psicólogos que têm prestado acolhimento voluntário na pandemia).

Os objetivos compartilhados no GT eram tratar da compreensão das condições de trabalho, inclusive de desemprego, agravadas pela pandemia e, principalmente, das condições psíquicas apresentadas pelos trabalhadores nesse contexto. Buscamos discutir o cenário do mundo do trabalho na atual conjuntura, as mudanças e possíveis impactos na saúde mental dos trabalhadores; refletir sobre ações estratégicas para o contexto da pandemia e do pós-pandemia; viabilizar um trabalho intra e interinstitucional, compartilhando diversas práticas e experiências; sensibilizar, informar e orientar trabalhadores e gestores da saúde sobre os Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho e sobre a notificação compulsória desse agravo; contribuir na articulação e divulgação de uma rede de acolhimento especializado para as questões de saúde mental e trabalho no contexto da pandemia e pós-pandemia; promover a intervenção sobre os sofrimentos mentais relacionados ao trabalho e à pandemia.

Ainda que não se trate de uma investigação empírica com coleta de dados primários diretamente com trabalhadores, esta pesquisa conta com a presença daquilo que Flick (2008, p. 158) denomina de “especialistas”, ou seja, informantes privilegiados – sujeitos que, por sua expertise, podem permitir uma aproximação exploratória com a realidade concreta, desde sua compreensão sobre ela. Os dados aqui apresentados foram sistematizados a partir da leitura: das atas das reuniões do GT; do registro dos relatos sobre a condição de saúde mental e sua relação com o trabalho realizados no grupo; e de artigos publicados em jornais sobre a temática. Assim, este relato da experiência demonstra uma potencialidade para o enfrentamento das adversidades que a crise sanitária tem interposto ao trabalho e à vida humana.

O objetivo de formalizar este relato de experiência é a organização: (i) das demandas relacionadas à saúde mental advindas do mundo do trabalho neste momento de pandemia que tem sido identificadas por psicólogas participantes do GT; principalmente (ii) das demandas dos trabalhadores da área da saúde, bem como (iii) dos conhecimentos e reflexões produzidos sobre atuações possíveis em saúde mental e trabalho na pandemia, sobretudo a partir da Psicologia, com o intuito de fazer avançar o saber e a prática em tempos de crise. Nesse sentido, este trabalho invoca o campo da ética e da política num compromisso com a vida humana e as formas justas e dignas de existência, compreendendo o trabalho e a vida como um direito humano inalienável.

O trabalho e a pandemia da Covid-19

Em escala global, megalópolis, grandes e pequenas cidades viram suas atividades serem interrompidas ou reduzidas por conta da alta letalidade e transmissão da Covid-19, o que delimitou novos cenários para aqueles que vivem do trabalho. Elver Moronte (2020, p. 221) apresenta analiticamente uma leitura em que identifica três grupos de trabalhadores, conforme seus cenários de trabalho neste período: os trabalhadores sem trabalho, aqueles que foram demitidos ou que não puderam manter seus trabalhos informais ou autônomos, uma vez que, junto com a pandemia, ocorreu uma crise econômica global; os teletrabalhadores, aqueles cujo trabalho permite flexibilidade quanto ao local de realização, sendo possível executá-lo inclusive em suas residências; e os trabalhadores em tempo de guerra, aqueles que precisam realizar seu trabalho de modo presencial.

Ainda que as novas análises sobre os cenários e as configurações do trabalho estejam em tempo de construção, para fins de análise do trabalho em geral será usado neste artigo o conceito de Contexto de Trabalho, como proposto por Mendes (2007). Trata-se de um conceito analítico que engloba o conjunto: (1) da organização do trabalho, que compreende a divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa, as relações de poder que envolvem o sistema hierárquico, as modalidades de comando e as questões de responsabilidade (Mendes, 2007); (2) das condições de trabalho, que compreende o ambiente físico, químico e biológico, as condições de higiene, de segurança e as características antropométricas do posto de trabalho (Mendes, 2007); e (3) das relações socioprofissionais de trabalho, que se refere a todos os laços humanos originados na organização do trabalho: as relações com hierarquia, chefias, supervisores e demais trabalhadores (Mendes, 2007).

Sobre os trabalhadores sem trabalho, como discutido por Moronte (2020), há uma dificuldade aqui posta para delimitar como seu contexto de trabalho se apresenta no momento da pandemia. O que se sabe é de uma perda das atividades que organizam a vida e as referências, colocando esse trabalhador à margem do sistema econômico e obrigando-o a se reinventar como profissional e trabalhador para dar conta da vida. Vale destacar que os elementos da organização do trabalho que mobilizam a vida concreta e subjetiva estão em suspensão nesse momento de perda do trabalho, podendo ser fonte de sofrimento e adoecimento para esses trabalhadores. O mesmo ocorre com as relações socioprofissionais de trabalho, que já não se fazem presentes e acarretam perdas identitárias e de trocas intersubjetivas e simbólicas, tendo o trabalhador que se reconhecer como tal a partir de outras referências. Sobre as condições de trabalho, é possível apontar dois aspectos: um de proteção, já que não há o contato com o ambiente de trabalho, que pode colocar em risco a vida pela contaminação do novo vírus; outro de risco, já que possivelmente esse trabalhador irá se lançar em outras atividades em meio à pandemia, inclusive tendo que circular pela cidade. Uma vez que saia de casa para trabalhar, enfrenta procedimentos e sofrimentos semelhantes aos do trabalhador em tempo de guerra.

Já o teletrabalhador (Moronte, 2020) tem o seu contexto substancialmente alterado. A organização do trabalho é atravessada pelo uso das tecnologias digitais/informacionais e pela internet. A avaliação e o controle podem ficar mais exacerbados (há casos de ter que “se manter logado” no sistema X horas, quando no presencial não havia esse controle): trabalhar com a câmera ligada (para ser supervisionado) e manter registros no sistema com relatórios de atividades ao longo do dia. Entendemos que ocorre um aumento do controle e da supervisão do processo de trabalho, assim como do resultado final. Ainda, as telas são a principal interface com o trabalho (e-mails, mensagens, ligações de vídeo ou de áudio) e as novas formas de trabalhar não necessariamente contemplam os conhecimentos e saberes já consolidados pelos trabalhadores. Eles devem aprender a utilizar novas ferramentas, que muitas vezes assumem uma parte do conhecimento já estabelecido para trabalhar, bem como desenvolver novos saberes e estratégias para alcançar os resultados pretendidos.

Dois exemplos emblemáticos dessa mudança são as aulas remotas e a telemedicina. Em suma, na nova organização do trabalho, temos o aumento do volume de atividades, as novas atividades (que antes não eram necessárias!), novas responsabilidades e novas formas de comunicação. Sobre as condições de trabalho, o teletrabalho na pandemia alterou significativamente o ambiente físico (que passa a ser a casa!) e as características antropométricas do posto de trabalho, com foco nas condições ergonômicas. Ainda que o ambiente físico, químico e biológico, a higiene e segurança estejam sob o controle da casa e do trabalhador – o que diminui o risco de contaminação pelo vírus em função do contato social, da sobreposição dos ambientes público (de trabalho) e privado (da casa) –, essas condições podem gerar estresse pela dificuldade de controle e separação das atividades, dificuldade na divisão dos tempos de trabalho e de lazer, sedentarismo e sobrecarga de trabalho físico (pela postura e excesso do uso de eletrônicos) e psíquico (pelo estresse e sobrecarga cognitiva e emocional).

As relações socioprofissionais de trabalho também se alteram no teletrabalho: os contatos são virtuais, ocorrendo em seus extremos – encontros esporádicos ou reuniões infindáveis. As relações de poder e hierárquicas têm sido acompanhadas de ameaças de demissão frente à crise, necessidade de comprovação das atividades realizadas e dos resultados alcançados, com o fim de justificar o emprego ou o salário. Além disso, as trocas e conversas para as questões relativas ao trabalho deixam de existir ou não ocorrem mais com tanta frequência, o que limita as trocas simbólicas no trabalho e fragiliza o laço com ele. 

Em momentos e regiões mais críticos, somente os trabalhadores em tempo de guerra foram liberados para o modo presencial. Esses trabalhos, chamados de “trabalhos essenciais”, foram assim classificados por serem imprescindíveis para a manutenção da vida da população. A organização do trabalho é marcada por reconfigurações na divisão do trabalho e das equipes e pelos extensos protocolos de higiene e segurança para o trabalho (SBPT, 2020). Para garantir a segurança, são aumentadas a supervisão e a vigilância, juntamente com as responsabilidades por si e pelos outros. O controle sobre o processo de trabalho é maior e mais exigente. A partir da vivência dessa nova realidade, podemos perceber que os protocolos de proteção aos trabalhadores presenciais exigiram modificações de tempo, dinâmica e forma de realização do trabalho. Registramos também elevada carga horária; sobrecarga de trabalho em decorrência do absenteísmo no local de trabalho; constante estado de vigilância; atenção redobrada para a execução das atividades e, ao mesmo tempo, cuidado com o contágio.

Assim, o “novo normal” se instaura de modo a mudar o cotidiano do trabalhador e a demandar novos procedimentos. Com relação às condições de trabalho, em nossas experiências de escuta de trabalhadores que podem ser enquadrados na modalidade de trabalhadores em tempo de guerra, pudemos notar essas modificações em três momentos, que fazem vislumbrar um aumento da carga horária relacionada à jornada de trabalho, que agora passa a demandar a realização de mais atividades: (a) antes, na preparação e transporte para o trabalho; (b) durante, na paramentação com Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), nas atividades ao longo da jornada de trabalho e na desparamentação; e, finalmente, (c) depois do trabalho presencial, no transporte de retorno e nos cuidados para a não contaminação do lar.

As relações socioprofissionais de trabalho também são modificadas – os contatos são evitados, as conversas e interações diminuídas pela sobrecarga de trabalho ou medo de contágio e as interações com a chefia são mediadas pelas necessidades protocolares de higiene e segurança ou de controle da produtividade. A nova rotina imposta aos trabalhadores acaba por expô-los não somente ao risco de contaminar a si mesmos ou a um ente próximo, mas também os deixa vulneráveis ao sofrimento psíquico e adoecimento mental. Frequentemente, esses trabalhadores estão enfrentando tensão pelo medo de contaminação e constante preocupação com a possibilidade de demissão. Como ressaltado por Moronte (2020, p. 225), “A manutenção dessas condições leva a um processo de desgaste que tem o potencial de gerar sofrimento e adoecimento”. Desse modo, o trabalhador vivencia o acúmulo de angústias que podem desencadear o adoecimento mental.

O trabalho dos trabalhadores da saúde e a pandemia da Covid-19

Os trabalhadores da saúde constituem uma categoria profissional emblemática da pandemia – pela sua atuação e pelo modo como são afetados, o que faz deles o exemplo tipificado das condições de trabalho na crise sanitária. Seu contexto de trabalho é repleto de carências, situação que gera medos e inseguranças, desencadeando crises e transtornos mentais nos profissionais da saúde (Meireles, 2020, 22 de maio). Em meados de julho de 2020, em parceria com os Conselhos Federais de Medicina e de Enfermagem, a Fiocruz anunciou a realização de uma pesquisa nacional para rastrear as condições de trabalho de profissionais da saúde como médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e fisioterapeutas (Toledo, 2020, 05 de maio). A análise do contexto de trabalho dos trabalhadores da saúde já está contemplada, em alguma medida, no que expusemos anteriormente com relação aos trabalhadores presenciais na pandemia, os chamados trabalhadores em tempo de guerra (Moronte, 2020). No entanto, em função das orientações, protocolos e especificidades aqui indicados, outros elementos se somam. Ainda, através dos relatos obtidos de trabalhadores que estão em serviços essenciais, sejam estes de hospitais ou equipamentos de Atenção Básica, o que encontramos, frequentemente, são outras realidades de trabalho.

Quanto à organização do trabalho, cabe destacar: dificuldades de remanejamento ou licença profissional quando necessário; diminuição do número de trabalhadores por setor, muitas vezes devido à contaminação pela Covid-19 no ambiente de trabalho; necessidade de assumir atividades dos colegas que faltam, novas regras sobre adequação e gerenciamento de escalas de trabalho, mudança na distribuição das atividades; ampliação das horas de trabalho; necessidade de chegar mais cedo e sair mais tarde a fim de cumprir o ritual de paramentação e desparamentação; o fato de a Covid-19 ser reconhecida como acidente de trabalho. Cabe ressaltar que a Covid-19 foi estabelecida como doença ocupacional para grupos que estão expostos ao contágio, como, por exemplo, os profissionais de saúde.

Esse reconhecimento torna indispensável a emissão de Comunicação de Acidente do Trabalho – CAT, conforme os artigos 19 e 20 da Lei 8.213/91. A CAT garante o afastamento do trabalhador, bem como o seguro de doença profissional preconizado pela OMS. Sobre as condições de trabalho, observamos a falta de materiais, mudanças na ergonomia do trabalho, o risco de contágio, equipamentos de proteção de baixa qualidade ou a escassez deles, que podem gerar dificuldades como restringir a ingestão de água para se privar de ir ao banheiro durante o turno de trabalho, devido ao risco de contaminação. Esses elementos geram dúvidas nos trabalhadores sobre a própria segurança. Por fim, sobre as relações socioprofissionais de trabalho, constatamos a preocupação em contaminar os familiares e a mudança da relação com os colegas e as chefias. Cabe salientar que as denúncias de assédio interpessoal e organizacional têm se apresentado no trabalho sob a égide da pandemia, agravadas pela crise e pelas precariedades. Há relatos, por exemplo, de ameaças de movimentação do trabalhador para ambientes mais críticos ou que lidam mais diretamente com os pacientes graves de Covid-19.

Frente a esse contexto, entendemos que medidas devem ser tomadas para garantir o direito ao trabalho digno, à saúde dos trabalhadores e à manutenção dos serviços de saúde para atender às demandas da pandemia. A responsabilidade pela gestão dos serviços de saúde é das instituições de saúde e dos gestores, bem como do governo, que devem participar ativamente na promoção da saúde desses trabalhadores, dando garantias de que eles terão as condições e a assistência necessária.

Estratégias de atuação e intervenção frente aos casos de sofrimento e adoecimento relacionados ao trabalho

A pandemia promoveu uma reestruturação dos serviços públicos e privados que fazem o acolhimento e o atendimento psicológico à população em geral e aos trabalhadores. Psicólogos foram remanejados de seus locais de trabalho ou de suas funções, tiveram que reinventar seus atendimentos e passaram a receber demandas de trabalho que não eram as habituais. Na clínica também apareceram dificuldades e angústias, delimitadas não só pelo real do vírus, mas também pelas novas configurações de vida, pelo isolamento e tudo que ele comporta de retorno de antigos dilemas e fantasias ou mesmo pela desesperança, perda da perspectiva de futuro ou do trabalho.

Esse contexto expõe a necessidade de novas formas de intervenção da Psicologia. Entre as experiências identificadas nos trabalhos no GT, destaca-se o projeto ApoioPsy Online – uma plataforma de atendimento psicológico cunhada por um grupo de psicólogas do Paraná para suprir a demanda de acolhimentos e atendimentos clínicos no contexto do isolamento físico imposto pela pandemia. Foi feita uma parceria com a Secretaria de Estado da Saúde do Paraná, com a Celepar (Tecnologia da Informação do Paraná) e a Superintendência de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná para o desenvolvimento dessa plataforma e para a integração dos atendimentos à plataforma Telemedicina Paraná.

Atualmente, a ApoioPsy conta com 58 psicólogas e psicólogos voluntários atuantes em escalas de plantão psicológico. O objetivo do projeto é fornecer acolhimento psicológico online de forma voluntária à população geral, com o intuito de mitigar o sofrimento psíquico e emocional decorrente não só do adoecimento por conta da pandemia, mas também dos seus efeitos paralelos, como a diminuição ou perda da fonte de renda, o refreamento do ritmo de vida, o isolamento social, as incertezas e o luto. Por se tratar de atendimento emergencial e focal, tomamos como base as estratégias dos Primeiros Cuidados Psicológicos. Foi desenvolvido um Protocolo Operacional Técnico para a equipe, que auxilia no acolhimento focal e emergencial. A plataforma atende trabalhadores em geral – autônomos, funcionários públicos, desempregados, trabalhadores em regime CLT, trabalhadores informais –, todos eles de diferentes ramos e atividades profissionais.

Os acolhimentos costumam demandar orientação, atendimento ou encaminhamento. Uma parte dos casos é encaminhada para as redes pública e privada de atendimento psicológico. Outra parte é orientada para aquilo que se busca no serviço e indica-se a continuidade do acompanhamento pela Telemedicina. Essa experiência traz desafios para os profissionais da Psicologia, seja porque exige a reorganização da técnica psicológica para o atendimento online, seja porque há um limite para a realização do trabalho de forma voluntária.

Com relação a outras práticas que estão sendo realizadas no campo da Psicologia no âmbito da saúde mental e trabalho na pandemia, podemos identificar as seguintes: (1) serviços de acolhimento e atendimento clínico e institucional; (2) elaboração de materiais informativos e de orientação para o cuidado com a saúde física e psíquica na pandemia; (3) orientação a gestores e equipes de trabalho sobre os cuidados com o trabalho e o trabalhador na pandemia; (4) acompanhamento de casos de Covid-19; (5) acompanhamento de retorno ao trabalho após afastamento; (6) acompanhamento de casos em sindicatos; (7) formalização e acompanhamento de ações coletivas de trabalhadores com adoecimento relacionado à Covid.

A notificação do sofrimento e/ou adoecimento mental é importante para fins epidemiológicos, para que, a partir do conhecimento da realidade dos ambientes e da organização do trabalho, possam ser propostas algumas medidas de intervenção para minimizar o sofrimento psíquico dos trabalhadores, sendo essa, portanto, considerada também uma ação de cuidado. No entanto, segundo o Conselho Federal de Psicologia (2019, p.34), a notificação dos agravos à saúde é um desafio para a rede de atenção à saúde, já que “constitui uma ação de cuidado na atenção integral aos trabalhadores. Atua na prevenção, dá visibilidade aos casos e permite que a rede de proteção e cuidado aos trabalhadores seja acionada”.

Tal perspectiva demanda da Psicologia uma ampla e séria discussão sobre as atuações em saúde mental e trabalho. Para os profissionais do campo da saúde, deve-se destacar a existência e a importância da Nota Informativa nº 94/2019-DSASTE/SVS/MS, anterior à pandemia, que reconhece, orienta e traz novas definições a respeito do adoecimento e sofrimento, apresentando a notificação de Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho como compulsória para agentes dos serviços públicos e privados de saúde que prestem assistência ao paciente. Ainda que seja uma nota já divulgada para os serviços de saúde em geral, cabe uma reflexão sobre seu lugar e seu potencial como instrumento de intervenção e enfrentamento às adversidades que se situam no campo do trabalho e estão relacionadas a um número significativo de sofrimento e adoecimento mental.

Das experiências relatadas no GT Saúde Mental e Trabalho na Pandemia, alguns elementos ganham destaque: identificamos que a procura por serviços de atendimento clínico ainda é baixa; que as estratégias com maior adesão têm sido aquelas realizadas no ambiente e no horário de trabalho, nas quais se busca fazer a equipe falar sobre seu contexto de vida e trabalho, bem como sobre suas dificuldades e angústias na pandemia; que os atendimentos realizados em serviços de Psicologia especializados não têm trazido para as instituições de trabalho ou para as categorias profissionais um retorno sobre o que se passa no universo psíquico com relação ao trabalho na pandemia, nem têm apreendido uma dimensão coletiva das questões afetivas, emocionais, de sofrimento ou adoecimento em sua relação com o trabalho e a pandemia; que os materiais produzidos com informação e orientação nem sempre atingem os trabalhadores, o que denota a necessidade de refletir sobre canais e formas de comunicação mais efetivas; e, finalmente, que há subnotificação de casos de sofrimento e adoecimento psíquico relacionados ao trabalho.

Nas discussões do GT, ficou claro que o trabalho sob a égide da pandemia sofre alterações, e isso pode se relacionar com o aumento do sofrimento e dos adoecimentos relacionados ao trabalho. Também constatamos que parte dos psicólogos da rede de saúde, dos consultórios particulares, da gestão pública e das empresas desconhecem as orientações e intervenções com relação à saúde mental e trabalho na pandemia.

Considerando o lugar que o trabalho ocupa na economia psíquica, assim como seu valor para o estabelecimento de uma condição coletiva da vida, entendemos que a Psicologia tem o compromisso social e político de realizar os enfrentamentos necessários nessa temática de saúde mental e trabalho. A partir do GT, foi feita a aproximação com algumas categorias de profissionais da saúde, por meio dos conselhos de classe, para buscar o debate e possibilidades de solucionar a problemática da subnotificação dos Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho no Estado, que não é uma realidade exclusiva do Paraná. Desse modo, está sendo construído um diálogo no Conselho Regional de Psicologia do Paraná para a reflexão sobre as condições de sofrimento e adoecimento relacionadas ao trabalho, especialmente no contexto da pandemia, e as ações possíveis para a Psicologia.

Considerações Finais: a atuação profissional da Psicologia em saúde mental e trabalho na pandemia

A prática profissional da Psicologia no cenário da pandemia da Covid-19 demanda uma série de alterações e dá destaque ao tema do sofrimento psíquico e da saúde mental relacionada ao trabalho. Isso revela como uma crise sanitária interfere na organização do tecido social, mobilizando também o campo psíquico. No que se refere ao trabalho, constatamos a precarização de suas condições em ampla escala, que vai dos direitos às relações estabelecidas com o local e a organização do trabalho – com efeitos na vida psíquica e na vida social, podendo gerar sofrimento.

Nesse sentido, a Psicologia é convocada a intervir. Seja no campo público ou no privado, as atuações profissionais sobre a temática da saúde mental e trabalho na pandemia ganham novos contornos, mas também precisam ser repensadas para que abordem a complexidade do fenômeno. As intervenções podem ocorrer em locais de trabalho com as equipes, com os trabalhadores individuais, na clínica, nas instituições de trabalho ou nos serviços e nas políticas públicas destinadas a trabalhadores, com vistas à garantia da vida e da saúde da população em geral.

As discussões e reflexões elaboradas num grupo de trabalho com psicólogas que buscam tanto compreender as relações entre saúde mental e trabalho na pandemia quanto construir as possibilidades de intervenção frente à problemática indicam a necessidade: (a) de novas estratégias de intervenção em Psicologia que possam dar conta das dimensões individuais e coletivas relacionadas ao sofrimento e ao adoecimento no trabalho; (b) de uma discussão sobre a notificação dos casos de sofrimento e adoecimento mental relacionados ao trabalho. Aqui, cabe destacar a importância de uma escuta sensível e qualificada para as questões do sofrimento e do adoecimento, mas também da investigação sobre a relação desses estados psíquicos com o trabalho, considerado com o todo da vida dos indivíduos.

Para concluir, afirmamos que, em tempos de pandemia, a ciência e a profissão psicológicas se fazem imprescindíveis, pois, no isolamento e nos espaços de confinamento, o adoecimento e as violações se tornam exacerbados, o que aumenta nossa responsabilidade coletiva pelo humano. Por isso, apostamos numa escuta atenta e numa ação transformadora da realidade e dos sujeitos para garantir um mundo mais ético e condizente com a vida humana. 

Referências

Conselho Federal de Psicologia. (2019). Saúde do trabalhador no âmbito da saúde pública: referências para atuação da(o) psicóloga(o) (2a ed.). Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia.

Meireles, G. (2020, 22 de maio). Profissionais da linha de frente encaram desafios de saúde mental na pandemia. Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Recuperado de  https://www.medicina.ufmg.br/profissionais-da-linha-de-frente-encaram-desafios-de-saude-mental-na-pandemia/.

Moronte, E. A. (2020). A pandemia do novo coronavírus e o impacto na saúde mental dos trabalhadores e das trabalhadoras. In C. B. Augusto & R. D. Santos (Orgs.), Pandemias e pandemônios no Brasil (pp. 219-228). São Paulo, SP: Tirant Lo Blanch.

Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT). (2020).  Orientações da OMS para prevenção da COVID-19. Recuperado de https://sbpt.org.br/portal/covid-19-oms /.

Toledo, P. (2020, 05 de maio). Covid-19: informações sobre a desinfecção e limpeza de superfícies e objetos. FIOCRUZ. Recuperado de https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-informacoes-sobre-desinfeccao-e-limpeza-de-superficies-e-objetos.

Como citar esse texto

APA – Guedes, A. P., Roveda, A., Simeão, C. F. de O., Brüning, C., Ragnini, E. C. S., Zanin, F. da C., & Rêgo, J. de A. L. (2020). Saúde Mental e trabalho em tempos de Covid-19: atuações da Psicologia. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/saude-mental-e-trabalho-em-tempos-de-covid-19-atuacoes-da-psicologia.

ABNT – GUEDES, A. P. et al. Saúde Mental e trabalho em tempos de Covid-19: atuações da Psicologia. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/saude-mental-e-trabalho-em-tempos-de-covid-19-atuacoes-da-psicologia>. Acesso em: __/__/____.