Revista CadernoS de PsicologiaS

Sobre um onírico literário

Maraiza Nayara Mancio
Graduanda do 8º período do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)
E-mail: maraiza.nayara@gmail.com
Marina Marques dos Santos
Graduanda do 8º período do Curso de Nutrição da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
E-mail: marquesmarina654@gmail.com
#Estilhaços

Quando se fala de alimentação, quais pensamentos lhe vem à cabeça? Muitas pessoas diriam comida, outras mencionariam sensações associadas ao ato, como: fome, prazer e bem-estar, e há quem pense em direito, cultura, história e relações afetivas. E de fato a alimentação é tudo isso! Ela faz parte do nosso dia a dia, estando presente em nossas vidas desde as primeiras horas, enquanto ainda estamos sendo gestados, e durante todo o processo de crescimento, desenvolvimento e manutenção do nosso corpo. 

A alimentação e o alimento também constituem uma forma de comunicar, de interagir e de se relacionar com os outros, podendo representar uma infinidade de simbologias e significados que fazem com que cada qual possua sua própria identidade alimentar. Sendo assim, enquanto vivermos, não importa o local que estejamos e o quê estamos fazendo, cada indivíduo estará carregando consigo um grande aparato histórico, cultural e social que foi construído por meio da alimentação e/ou das ações que a orbitam (cultivar, colher, escolher os alimentos, cozinhar, pôr a mesa, retirar, higienizar e guardar os utensílios de cozinha). 

Ora pois, então em resumo, a alimentação é algo essencial para a vida. 

Mas, quando o fim da vida se aproxima, qual é o papel da alimentação? Quando o assunto é doenças ameaçadoras da vida e cuidados paliativos, a alimentação ou a terapia nutricional ganha novos significados e representações. Com a evolução da doença, tornam-se cada vez mais regulares os sintomas gastrointestinais (diarreia, êmese, náusea, desconforto gástrico e intestinal, entre outros) e as dificuldades para mastigação, deglutição, autoalimentação e, até mesmo, preparo das refeições. Assim o ato de se alimentar deixa de ser prazeroso, levando à uma redução do volume e da frequência de consumo alimentar. Tendo a alimentação essa função crucial amplamente aceita e reconhecida socialmente de: “dar manutenção à vida”, familiares e paciente passam, neste momento, por um processo de luto antecipatório pela perda ou redução da capacidade de ingerir alimentos, cabendo aos profissionais nutricionista e psicólogo, juntos, acolherem as angústias e ressignificarem o alimento e o ato de se alimentar. 

Mas, por que falar de processo de luto e alimentação em pacientes em fim de vida e/ou cuidados paliativos? 

Ao receber o diagnóstico de doenças ameaçadoras da vida e com a implementação dos cuidados paliativos, vivencia-se uma sucessão de perdas relacionadas à identidade e subjetividade daquela pessoa. Uma vez que, o quadro clínico pode desencadear uma série de limitações àquele indivíduo, contribuindo na perda da autonomia e no poder de escolha sobre seus desejos, preferências e, até mesmo, o impedimento das atividades que lhe proporcionem bem-estar. Neste contexto, inclusive, pode ocorrer a intensificação de sentimentos como angústias, desesperança, desmotivação nas atividades acarretando num intenso sofrimento ao paciente e seus familiares. 

Frequentemente falamos de luto relacionado à morte de alguma pessoa que carregava uma simbolização importante na vida daqueles que com ele conviviam. Entretanto, o luto atravessa-se para além da morte, ele se apresenta a cada possibilidade de irreversibilidade que somos colocados, pois é considerada sua característica fundamental. 

Nas doenças ameaçadoras da vida e nos cuidados paliativos, é comumente escutado ao longo do processo, apresentadas na forma de “ele(a)/você nunca mais irá…”. Portanto, quando falamos sobre prováveis limitações e impedimentos relacionados à alimentação decorrentes do avanço da doença, também estamos falando sobre o processo de luto que,

muitas vezes, não é considerado. Com isso, questiona-se, o que é possível fazer para diminuir as perdas vivenciadas nesse processo? 

No âmbito do nutricionista, e aqui não falamos daquele profissional de consultório que restringiu sua alimentação a uma lista de 3 alimentos que eu sei que você pensou, a utilização do alimento como medida não-farmacológica de alívio de sintomas e para o retardo da degradação do estado nutricional do indivíduo é uma das estratégias, mas não a mais importante – uma vez que a alimentação e a hidratação nesse contexto não são capazes de evitar a morte iminente. 

É a denominada “alimentação ou dieta de conforto” a medida fundamental a ser tomada, significando que a preocupação com a oferta das necessidades nutricionais é deixada de lado e dá lugar para o oferecimento do prazer e do conforto por meio da alimentação (e das ações ligadas a ela). Aqui prioriza-se garantir a comida de preferência ou desejo alimentar do paciente que, mesmo ingerindo pequenas porções ou apenas visualizando e/ou sentindo seu aroma, é bombardeado por recordações e sentimentos que proporcionam bem-estar físico e emocional. 

Outra idealização da alimentação de conforto, é a promoção da prática da habilidade culinária (caso seja do desejo do paciente e este apresente condições), propondo que o enfermo continue a cozinhar o alimento para si e/ou para seus familiares e amigos. Os resultados costumam ser positivos, uma vez que, ao dar a oportunidade para que o indivíduo cuide de si próprio e do outro, é aberto caminho para não só sentir prazer e uma enxurrada de emoções particulares a cada qual, como também de fortalecer vínculos com entes queridos – um benefício para ambos os lados. 

Ainda nesse sentido, não podemos deixar de falar daquela decisão que sorrateiramente sempre, em algum momento, consegue se inserir nas discussões entre a equipe de cuidados paliativos e os familiares e paciente: a de deixar de comer. Nas situações em que se alimentar

passou a ser um sofrimento para o indivíduo e a mudança de via de alimentação (enteral ou parenteral) não é mais uma opção, o simples ato de não ingerir mais nenhum alimento ou nutriente também é uma medida a ser considerada, sendo capaz de garantir conforto físico e emocional. 

Assim é a alimentação de conforto (que ao ponderar cada circunstância) descaradamente faz todas as vontades daquele paciente e assim promove o adiamento da perda da sua autonomia, ao deixá-lo decidir por algo que durante toda a sua vida sempre decidiu e, dessa forma, contribui positivamente na ressignificação do comer e é frente na redução do sofrimento relacionado a sua condição. 

Pois então, se a alimentação dá manutenção à vida, o alimento comunica emoções e o colher e cozinhar perfazem interações e relações, seria o comer uma maneira de deixar sua pegada no mundo?

Referências

Contreras, J., & Gracia, M. (2011). Alimentação, sociedade e cultura. In Alimentação, sociedade e cultura (pp. 495-495). 

Dos Santos, C. R. A. (2005). A alimentação e seu lugar na história: os tempos da memória gustativa. História: questões & debates, 42(1). 

Mascarenhas, H. L., & Morais, T. C. P. (2023). Percepção e memória afetiva relacionada à alimentação em cuidados paliativos oncológicos. BRASPEN Journal, 37(2), 151-157. 

Rezende, L. C. S., Gomes, C. S., & da Costa Machado, M. E. (2014). A finitude da vida e o papel do psicólogo: perspectivas em cuidados paliativos. Revista Psicologia e Saúde.

Como citar esse texto

ABNT — MANCIO, M. N.; SANTOS, M. M. dos. Seria o comer uma maneira de deixar sua pegada no mundo? CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/seria-o-comer-uma-maneira-de-deixar-sua-pegada-no-mundo/ . Acesso em: __/__/___.

APA — Mancio, M. N., & Santos, M. M. dos. (2024). Seria o comer uma maneira de deixar sua pegada no mundo? CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/seria-o-comer-uma-maneira-de-deixar-sua-pegada-no-mundo/