Revista CadernoS de PsicologiaS

Sobre cacos, pausas e o espaço para a palavra (escrita)

Tayna Nayara Nunes
Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - Complexo Hospital de Clínicas da UFPR

Psicóloga (CRP – 08/17115) - Email: tnn.psico@gmail.com

#Estilhaços

Estilhaços, essa nova modalidade de textos me atingiu de imediato, me provocando e me convocando a escrita de pronto. De pronto, também, não identifiquei exatamente o que me tocou e por que me senti tão mobilizada. Talvez seja pelo fato de que ao longo desta vivência da pandemia, enquanto profissional de saúde, psicóloga, atuante na linha de frente de uma UTI COVID, em muitos momentos me senti em cacos, estilhaçada. 

De muitos cacos de vidros, podem-se formar belos vitrais. Os cacos, com seus diferentes tamanhos, proporções, cores e intensidades, quando juntos e harmonizados, podem formar novas imagens, com novos significados… claro, não sem antes passarem pelas mãos de um artesão, que muitas vezes se ferem para dar forma a essa criação. 

De maneira semelhante, talvez, esteja ocorrendo meu trabalho de elaboração diante de tantas vivências sofridas na UTI. Acompanhando pacientes adoecidos pela COVID-19, seus familiares, nossa equipe, tão exausta, minhas residentes, que no ano passado tanto tiveram que se dedicar para algo que sequer estava previsto em seus cenários de prática, minhas novas residentes, que chegaram tão assustadas. 

Tal como a reunião e organização dos cacos para a formação de um vitral, talvez a oportunidade de pôr todas essas vivências em palavras, que se agrupam e formam texto, seja minha grande oportunidade de fazer de meus estilhaços algo de outra ordem. 

Nesse ponto me ocorre uma vivência muito marcante. Atuo em ambiente de terapia intensiva desde que concluí a graduação, lá já se vão quase uns bons dez anos. E nesse ambiente, onde impera a urgência orgânica, onde diferentes profissionais com suas diferentes formações trabalham de maneira harmoniosa para reverter situações de extrema ameaça a vida, sempre observei minhas equipes (principalmente médicos, enfermeiros e fisioterapeutas) agindo de maneira rápida para realizar procedimentos como a ressuscitação cardiopulmonar ou intubação orotraqueal. 

Mas não pensem que esses procedimentos são realizados como são desenhados nos programas televisivos, com desespero e gritaria. Na grande maioria das vezes, há movimentos coordenados, precisos, silenciosos, onde cada membro dessa equipe sabe muito bem onde estar e como agir, como uma orquestra, tocando em harmonia e que tem, como maestro, o próprio paciente, pois é ele, com sua condição clínica, sempre singular, que irá determinar nossos movimentos enquanto equipe. Porém, sempre de maneira rápida, pois a perda de tempo, pode sim, significar a perda de uma vida.

Pois bem, a pandemia nos trouxe pacientes com comprometimento pulmonar significativo, com necessidade de suporte de oxigênio em diferentes proporções a depender de cada caso. Com isso, um aumento de pacientes precisando ser intubados para receber ventilação mecânica. 

Quando este procedimento se faz necessário, significa que o paciente está com saturação baixa, seu corpo está oxigenando pouco, o que trás riscos a sua vida. Este sempre foi um procedimento que demandava atuação da equipe médica, de enfermagem e fisioterapia, ponto. Não havia lugar para a psicologia, afinal de contas, o que uma psicóloga poderia fazer diante deste procedimento? 

Reparem, não havia (passado), até a chegada de pessoas adoecidas pela COVID-19. Até o momento em que pandemia nos escancarou que quando um paciente precisa ser intubado, ele não é apenas um paciente, ele é uma pessoa, um sujeito, como pensamos em termos psicanalíticos. 

Até o dia em que uma de nossas pacientes levantou a bandeira, quando foi informada de que precisaria ser intubada, que gostaria de, primeiro, falar com seu filho, pois naquele dia era aniversário do mesmo. Nesse momento, ela deixou de ser a paciente. 

Nesse momento, eu psicóloga da unidade, ainda não havia chegado para meu horário de trabalho, mas minha equipe sabia de nossa atuação na realização das visitas virtuais como uma estratégia para aproximar os pacientes de seus familiares por meio da realização de videochamadas, e aguardou minha chegada, pouco tempo depois, para me sinalizar o pedido da paciente.

Essa paciente nos introduziu um ponto de pausa e reflexão, afinal, quantos de nossos pacientes, antes dela, já haviam sido intubados sem antes terem tido a imediata oportunidade de uma conversa com algum de seus familiares, e quantos desses não tiveram a oportunidade de sair deste tubo, para uma conversa no a posteriori, pois faleceram neste meio tempo. 

Ela inseriu a psicologia como um membro da equipe que também pode participar do processo da intubação orotraquel, ela escancarou sua urgência subjetiva, colocando-a em primeiro lugar, diante de sua urgência orgânica, como assim, didaticamente, ainda hoje, dividimos as urgências que acometem os seres humanos, evidenciando como o dualismo cartesiano ainda se faz presente. 

Ela sensibilizou nossa equipe. Enquanto eu a atendia e realizavámos a videochamada com seu filho, os demais membros da equipe organizavam os materiais necessários para a realização da intubação. Quando me dei conta, eu estava a sós com a paciente em seu box, portas fechadas e minha equipe do outro lado do vidro, paramentada, pronta, observando e aguardando plenamente para entrar e realizar o procedimento. 

Houve mais do que a espera pela realização de uma simples videochamada, houve o respeito pelo desejo de uma mãe, houve o respeito pelo seu tempo de fala, de expressão de afeto. 

Ela nos deixou em cacos quando faleceu poucos dias após. Nos deixou ainda mais reflexivos sobre a importância que teve este momento de pausa em sua vida, que estava em seus últimos dias. 

Ela provocou mudanças na maneira como a equipe médica (não sei se eles próprios já se deram conta disso) observava e conduzia a realização das intubações, pois, sempre que possível, este procedimento passou a ser realizado de uma maneira menos imediata, talvez, mais planejado, falado, sinalizado, tanto ao paciente quanto a sua família. Passou a ser compartilhado com a psicologia para que a subjetividade tivesse seu espaço garantido de expressão antes da intubação calar a voz de nossos sujeitos, pois já não eram apenas pacientes.

Como citar esse texto

APA – Nunes, T. N. (2021). Sobre cacos, pausas e o espaço para a palavra (escrita). CadernoS de PsicologiaS, 2. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/sobre-cacos-pausas-e-o-espaco-para-a-palavra-escrita/

ABNT – NUNES, T. N. Sobre cacos, pausas e o espaço para a palavra (escrita). CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 2, 2021. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/sobre-cacos-pausas-e-o-espaco-para-a-palavra-escrita/>. Acesso em: __/__/____ .