Revista CadernoS de PsicologiaS

Sobre um onírico literário

Ana Clara Moliani Sobreira Moraes
Acadêmica do 5º ano do curso de Psicologia na Universidade Estadual de Maringá
E-mail: anamoliani7@gmail.com
Aline Sanches
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá
E-mail: asanches@uem.br
Letícia Vier Machado
(CRP-08/22907)
Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá
E-mail: lvmachado2@uem.br

#Estilhaços

Escuta: nos sonhos, e sobretudo nos pesadelos, quando há desarranjos intestinais ou alguma coisa assim, às vezes o homem vê coisas tão artísticas, uma realidade tão complexa e efetiva, acontecimentos ou até um mundo inteiro de acontecimentos, amarrados por tal intriga, com tais detalhes inesperados, desde manifestações superiores até o último botão do peitilho, que te juro que nem Lev Tolstoi conseguiria criá-lo, e no entanto quem tem esses sonhos às vezes não tem nada de escritor, mas são as pessoas mais comuns (Dostoiévski, 1880 [2019], p. 716).

Na obra mais aclamada de Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov, durante um delírio de Ivan Fiódorovitch, a figura de um velho aparece e coloca em jogo tudo aquilo que o irmão  do meio achava que sabia. O capítulo que descreve o delírio de Ivan é central na obra: enquanto o irmão mais velho, Dmitri, é acusado de parricídio, o testemunho de Ivan torna-se descredibilizado em conta do delírio, e, ao final do capítulo, o outro suspeito de matar o pai Karamázov se suicida. É a partir desse momento que o testemunho de Ivan Karamázov é descredibilizado pois, por ser tomado como um louco, não se saberia a veracidade do que contava. Durante o delírio – meio delírio, meio sonho  –, a figura do ancião diz que é nos sonhos que os sujeitos criam realidades das mais artísticas, que nem mesmo Tolstói – a maior referência literária russa da época – poderia conceber. Na própria obra, o ancião ainda enuncia  que não diz nada que não seja de Ivan, uma vez que, por ser um delírio, é ele próprio.  O sonhado, mesmo que aparentemente estrangeiro a nós, faz parte do nosso íntimo – assim como o velho reconhece que faz parte de Ivan. Os sonhadores, para o velho (ou para Dostoiévski) podem não ter nada de escritores, mas a partir dos sonhos criam narrativas das mais incríveis e pesadelos dos mais terríveis. 

Retomando a importância histórica da publicação de A Interpretação dos Sonhos (1900), tomamos em consideração as palavras de Freud:  “(…) não recusem à vida onírica a liberdade de expressão” (Freud, 1900, p. 16). O sonho da injeção de Irma  é considerado paradigmático para a construção da teoria psicanalítica. Freud (1900, p. 15) coloca que para o desenvolvimento da psicanálise, “mostrou-se necessário revelar a desconhecidos mais intimidades da minha vida psíquica do que podia ser do meu agrado e do que cabe a um autor que não é poeta, mas homem da ciência” – um vislumbre da poética de contar sonhos. 

Freud (1900, p. 127), então, propõe “demonstrar que os sonhos podem ser interpretados (…) ‘interpretar um sonho’ significa informar seu ‘sentido’, substituí-lo por algo que se insere como elo equivalente no encadeamento das nossas ações psíquicas”. Para tal, pedia que seus pacientes comunicassem aquilo que sonharam, de forma livre e espontânea, tal qual se lembravam dele e poupando-o de qualquer censura eventual. O caráter narrativo do sonho propõe uma produção criativa, tendo singularidades e especificidades de linguagem. E essa linguagem “não serve apenas para a expressão dos próprios pensamentos, mas essencialmente para comunicá-los a outros” (Freud, 1910, p. 133) – comunica-se um sonho para que este se faça parte de uma relação com um outro. 

Assim, se o inconsciente é estruturado como linguagem (Lacan, 1988), o sonho é um texto que se oferece para a leitura; consequentemente, a produção onírica faz do sonhador poeta e leitor. Na literatura de Dostoiévski, já se via o potencial artístico dos sonhos, e a partir da proposta de escrita que o sonhar permite, podemos pensar numa escrita democrática: democrática, pois exige daquele que se põe a escrever um único requisito, o próprio gesto de escrever. O que surge no texto pretende escapar das censuras e correções, abrindo a oportunidade de colocar na página as palavras ditadas pelo inconsciente. Assim como coloca Dostoiévski através do ancião, aquilo que sonhamos já está de alguma forma em nós, mesmo que irreconhecível e aparentemente enunciado por uma outra pessoa. O sonho representa uma novidade de escrita não só para quem lê, mas para quem escreve – tendo assim um potencial de elaboração para aqueles que dão tempo aos sonhos.

Quando se sonha, adota-se a posição de espectador, a mesma de quando se escreve. A cada nova palavra, tem-se uma surpresa, uma reviravolta, nos tornamos plateia da própria escrita. A ideia de uma escrita que segue o inconsciente toma como base a expressão do sonhar. Há uma lógica onírica, inconsciente, aparentemente desconexa e despida de gramática, de tempos verbais e de vocabulário, mas que segue uma significação própria do sonhador, que remete à linguagem na qual se insere como sujeito – o sonho, delírio noturno e singular, ainda faz parte de uma rede compartilhada através da cultura, e permite que o sonho faça parte de um espaço compartilhado através da narrativa. 

Cada texto, assim como todo sonho, promove uma experiência subjetiva naquele que lê. A narrativa a partir do sonho pretende, através de construções conscientes (consideração pela representabilidade), tornar o sonhado possível de ser narrado. A linguagem presente no texto dos sonhos promove não só a comunicação e a circulação de informação, mas também a evocação e implicação do sujeito que sonha na realidade compartilhada. 

Cada sonho, assim como cada texto, é tão original quanto a pessoa que o sonha e que o escreve: “O sonhador inventa a sua própria gramática. Não há material significante ou texto prévio que ele se contentasse em usar, mesmo que jamais se prive dele” (Derrida, 2014, p. 307). A partir da própria subjetivação, fonte de uma gramática dotada de redes de significações específicas a cada sujeito, os sonhos se fazem presentes como uma cena de escrita, tornando o sonhador um escritor, mesmo que apenas enquanto dorme. Derrida (2014, p. 313) escreve que se deve transformar “o idioma absoluto em limite sempre já transgredido”, não deixando a escrita à mercê de regras supostas, mas tendo a linguagem como um convite à transgressão dos sentidos. 

Na escritura psíquica, portanto, ao utilizarmos de uma maneira própria a linguagem de forma instrumental, torna-se possível o desregramento da lógica consciente. Subordina-se a palavra ao inconsciente, ao encadeamento lógico de cada sujeito e que, a partir do determinismo psíquico, coloca cada frase a serviço do desejo. As palavras se tornam agramaticais, permitindo contradições, absurdos e incongruências: possibilitam criação de espaços e de futuros que transpõem os limites do que é posto como regra. 

Somos convidados a escrever da mesma maneira como sonhamos, em um livre fluxo de inconsciência. Apesar de os sonhos serem construções subjetivas, não sabemos exatamente como os criamos – tal qual o escritor não sabe como escreve. Ambos momentos de sono e de escrita têm seus rituais: para o sonho, apagar a luz, deitar e dormir; para a escrita, o ritual é um pouco mais específico a cada um que escreve, mas resume-se em se sentar, pegar um lápis (ou um computador) e colocar palavras a fluir. Às vezes, as palavras surgem a rodo, embaralham-se, fluem até estourar a tinta da caneta de tanta coisa a se dizer. Às vezes, tem-se apenas um deserto seco, um vazio sem som, sem eco. Não se pode prever se uma noite será cheia de sonhos ou se passará tranquila, assim como não se prevê as palavras que escoarão na escrita. 

Sonhar e escrever são exercícios que fazemos. Colocamo-nos da forma mais confortável possível e esperamos o fluxo inconsciente que pode se fazer presente. As escritas onírica e de vigília não respondem aos mandados conscientes, apenas acontecem, a partir dos desejos, das vivências, e das memórias. 

Podemos comparar a escrita e o sonhar na estrutura e nos elementos presentes em sua representação. As narrações onírica e literária envolvem uma trama complexa que pode ser deslocada em vários personagens, ou condensada em um único sujeito. É através da criação presente nos sonhos que podemos colocar a escrita e a arte, como recurso fundamental para pensar os sonhos, sendo estes elementos de figuração, representação e apresentação dos pensamentos inconscientes. As histórias sonhadas-escritas durante a vida onírica têm uma qualidade poética inerente. 

Uma força narrativa, de criação e de resistência, que assemelham-se ao movimento do próprio poeta e que, segundo Koselleck (2022, p. 135), “é exatamente essa qualidade poética dos sonhos que nos permite tirar desse gênero de fontes constatações que jamais poderiam ser coletadas por relatos factuais”. As manifestações inconscientes entram em um registo miraculoso, estranho, inexplicável, sendo uma outra experiência de linguagem, que não se pretende submissa à significação, nem à lógica consciente. Ainda, é a palavra escrita, sonhada, que permite a construção de lugares, oferecendo suporte para a costura de um saber sobre si e para uma busca pela elaboração do mundo e de outros possíveis. 

Os sonhos, como produções literárias, concedem ao sonhador uma saúde para insistir na vida, para abrir espaços, para compartilhar-se com o outro. Sonhar torna-se, aqui, um ato revolucionário: não exige nada além do dormir, sendo democrático por natureza. É um direito inalienável, independente de tentativas de cerceamento na realidade de vigília, um espaço para escrever, para sonhar, democratizar a arte, as formas de expressão. Contar um sonho é ampliar possibilidades de futuro e de existência. Enquanto pudermos sonhar, poderemos resistir.

Referências

Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. (M. Silva, P. Lopes, P. Carvalho, trad.). São  Paulo, SP: Perspectiva. 

Dostoiévski, F. (2019). Irmãos Karamázov. (P. Bezerra, trad.). São Paulo, SP: Editora 34. (Trabalho original publicado em 1880). 

Freud. S. (2019). A interpretação dos sonhos. (P. Souza, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1900). 

Koselleck, R. (2022). Posfácio. In C. Beradt, Sonhos no Terceiro Reich (S. Bittencourt, trad., 125-142). São Paulo, SP: Fósforo.

Lacan, J. (1988). O seminário, Livro III: As psicoses. (A. Menezes, trad.). Rio de Janeiro, RJ: 

Editora Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956). 

Como citar esse texto

ABNT — MORAES, A. C. M. S.; SANCHES, A.; MACHADO, L. V. Sobre um onírico literário. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/sobre-um-onirico-literario/. Acesso em: __/__/___.

APA — Moraes, A. C. M. S., Sanches, A., & Machado, L. V. (2024). Sobre um onírico literário. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/sobre-um-onirico-literario/