Revista CadernoS de PsicologiaS

Tessituras de composição com a Psicologia: arte de contar

Daniela De Maman
Doutora em Educação - UFPEL- Profª Adj. D. Unioeste- Estudante do Curso de Psicologia- Unipar - Campus de Francisco Beltrão/PR

E-mail: danielademamam@gmail.com
#Estilhaços

Acta sunt verba volant” – palavras faladas voam para longe, palavras escritas permanecem (ZABALZA, 2004).

A arte de contar é semelhante a arte de tecer, unir pontos, compor! O contar, também, pode ser comparado ao ato de tecer, da tessitura num dado momento, espaço de tempo onde os elementos da contação podem não ser linhas de algodão, e sim discursos sobre aprendizagens, que igualmente, compõem num espaço, num momento, neste lócus: a formação em Psicologia como uma história de aprendizado única e singular!

Assim, a arte, talvez não seja uma tapeçaria composta por entrelaçamentos de fios, mas um diário de bordo, igualmente, constituído por movimentos, porém, linguísticos-interpretativos, onde o modelo dominante e vivo são os acontecimentos, que emergem dos atravessamentos dialógicos! O campo empírico da pesquisa são as disciplinas, que compõem as três primeiras séries do Curso de Psicologia.[1]

Assim, convido os leitores deste caderno a conhecer uma trajetória singular de aprendizagem, na qual, componho, como protagonista em meio a cenários da Psicologia. As tessituras aqui compartilhadas referem-se ao processo de reflexividade estabelecido, a partir de contextos empíricos – vivências formativas, e de contextos sistemáticos – experiências teóricas sobre o cotidiano pedagógico vivenciado nas três primeiras séries.

Como foi este tecer pedagógico em Psicologia? Um entrelaçamento cotidiano, tendo como ponto inicial, o ingresso no Curso, após tomando forma, por meio de um tecer dialógico, sobre o qual foi havendo acontecimentos postos em discursos os quais pela arte de contar, dialogam entre a construção e reconstrução de conhecimentos sobre o sentir, o pensar e o fazer psicológico numa composição teórico-prática, como recurso didático para a aprendizagem em psicologia.

Para além do tecer em relação aos discursos dialógicos, é posto em acontecimento o movimento de olhar este sentir e pensar, como movimentos complexos de pensamento, no fazer psicológico com estabelecimento da combinação entre a explicação (por parte dos docentes) e a interpretação (minha autoria no processo) dando forma ao diário de bordo!

 O percurso metodológico como moldura epistemológica, para o tecer o diário de bordo consiste no estudo bibliográfico, na observação e investigação pesquisa-ação da práxis das disciplinas estudadas no Curso de Psicologia, como recurso para a reflexão sobre a aprendizagem em relação ao fazer psicológico organizando por meio da tessitura aprendizagens sobre o fenômeno psicológico. Foram seguidos os pressupostos de Stake (2011) quando este informa que é necessário ter clareza de que o interesse pelo tema e objeto da pesquisa pode interferir na compreensão do funcionamento das coisas, e a experiência como situação, continuidade e interação a partir do sentir, do fazer.

Assim, este viés na trajetória da escrita exigiu o envolvimento, intenso nesta em torno dos sentidos estabelecidos, nas situações de aprendizado nas disciplinas.  Este envolvimento foi o elemento que direcionou o olhar para a perspectiva da situação singular em que o pensar, o sentir-se promovia em relação a compreensão do o fazer em Psicologia. Pois, cada movimento reflexivo e interpretativo – tessitura com a escrita– produz movimento e ação e o re-olhar das próprias concepções impulsionando a reflexão e, em como estas compõem o aprendizado conceitual sistemático do fazer psicológico.

Os discursos- escritas narrativas contadas no diário são dialógicas, na medida em que, são construídos a partir de dois âmbitos linguísticos: a descrição e a interpretação, ambas revelando a complexidade do pensamento oriundo da trajetória da formação inicial em Psicologia. Ao tecer em linhas através da escrita, vivencio um movimento de tomada de consciência, ao atribuir sentido e significado as experiências, num movimento de dialogicidade e, recursividade em relação a própria ação de reflexividade.  Esta tríade conceitual entendida, como processo de emergência dos pensamentos e sentimentos atribuídos ao fazer psicológico amparado na ideia de conhecimento e a perspectiva do pensamento complexo de Morin (2015).

A trajetória de pesquisa-ação (elaboração do diário) possibilita a reunião de dados empíricos a análise sobre minhas próprias percepções subjetivas em relação ao fazer psicológico, mediante ao emergir de subjetividades e complexidades, expressas por meio da reflexividade discursiva-dialógica no diário de bordo. A partir da leitura e interpretação continua dos discursos tecidos no diário de bordo é possível inferir sobre a análise reflexiva gerar um ciclo de retroalimentação conceitual– quanto mais produzo discursos-tessituras mais elementos conceituais são construídos ressignificados.

Segundo Maturana (2006) o discurso narrativo e interpretativo se mostra por meio da linguagem sendo para (Bakhtin, 2003) uma prática social. O diário de bordo, neste contexto de pesquisa, atua como instrumento de documentação, como apontam Porlán e Martín (1997), possibilita olhar para o próprio pensamento, experiências e sistematizações para compreender o imaginário de ideias, refletindo sobre a trajetória de aprendizagem (Pórlan; Martín, 1997).  Nesta direção, compartilho o excerto I do diário de bordo da reflexão construída na disciplina de Introdução a psicologia clínica (3ª série), referente ao conceito de subjetividade:

“O processo de subjetivação envolve o jogo de relações das atividades do sujeito, se dá a todo instante, devido ao envolvimento deste em relações de poder expressas em discursos. Contudo, a subjetivação é um processo complexo estruturado através de todas as práticas em que o sujeito está inserido, desde aquelas em que ele mesmo é ator principal, até aquelas em que ele é um mero espectador em meio a influências do meio externo, sobre sua história pessoal e coletiva, numa relação dialética que se compõem no contexto histórico-social: sendo a subjetividade um movimento de pensamento, sem um núcleo específico vindo de uma pretensa natureza humana” (Abril-2023-diário de bordo-Daniela De Maman).

Para compreender estes movimentos reflexivos de pensamento os autores, Bakhtin (2003), Maturana (2006), Zabala (1998), e Morin (2015), expõem suas perspectivas sobre a complexidade ser movida pela dinâmica da incompletitude do pensamento, como momento do emergir de subjetividades. Assim, uma das perspectivas que afloram, dizem sobre o movimento gerado pela ação da tessitura discursiva em torno da formação em Psicologia, narrar as subjetividades, como diferenças em movimento, conforme o excerto como “movimentos de deslocamento do existir-autônomo-sensível às experiências internas/externas(Maio-2023-diário de bordo-Daniela De Maman).

As tessituras sobre o sentir, o pensar, e o fazer psicológico postos em composição, mostram que os sentidos e significados elaborados são saberes necessários, para além da dimensão conceitual e procedimental, mas atitudinal. Esta é justamente, a contribuição do pensamento complexo (Morin, 2015), transposta para a Psicologia, enquanto ciência, quando relaciona a essencialidade de considerar o conhecimento acadêmico de forma contextualizada, sendo assim, Zabala (1998) ao sinalizar sobre tipologias conceituais aborda os conteúdos em três categorias: conceituais, procedimentais e atitudinais[1].

Deste modo, o cotidiano teórico-prático da formação inicial em Psicologia é composto por tradições filosóficas e culturas de atuação (abordagens), as quais exercem fortes influências sobre o exercício profissional, na medida em que suscitam reflexões: Qual a importância da atitude reflexiva para o estudante de psicologia? Como entender o território complexo das subjetividades?

Nesta perspectiva, Morin (2005) propõe o conceito da complexidade. Para este, todo conhecimento é uma interpretação de informações, um exercício de tradução do novo, seguido de uma ação de restruturação no pensamento para lidar com os novos conhecimentos: a ação de compreensão sobre a complexidade, que envolve a razão dos seus próprios pensamentos.

A perspectiva da reflexividade fomentada pela linguagem discursiva-narrativa, é tida, enquanto pensamento crítico, sobre a realidade como parte do processo formativo, balizado por Morin (2015), quando este diz que o conhecimento advém da percepção, da representação, da observação e da experiência. A seguir, apresenta-se a figura I ilustra o diário de bordo utilizado para as documentações conceituais, procedimentais e atitudinais.

Figura I – Diário de bordo – escrita autoral enquanto estudante do curso de Psicologia da Unipar.

Fonte: Diário de bordo autoral (2021, 2022, 2023).

Interpreto, que o conhecimento advém, também, do saber e, este da interpretação da informação. Assim, é resultado de um conhecimento construído e organizado a partir do raciocínio. Deste modo, o conhecimento, através da percepção, pode ser resultante das representações coletivas, da consciência, da inteligência. Ou, ainda, o conhecimento pode ser concebido como ideia do pensamento a partir da evidência, da convicção. Assim, a partir dos pressupostos de Morin (2015, p. 18) é possível, associar a uma competência (aptidão para produzir conhecimentos), a uma atividade cognitiva (cognição), um saber (resultante dessa atividade). Na sequência, são apresentados excertos conceituais narrativos-documentais organizados a partir das vivências como estudante de Psicologia em algumas disciplinas das três primeiras séries do Curso:

Excertos I e II- Diário de bordo (2021, 2022, 2023) – disciplinas: Psicologia e saúde, Psicologia e sociedade, processos psicológicos básicos.

Fonte: Diário de bordo autoral (2021, 2022, 2023).

A partir exposição dos excertos I e II, é possível estabelecer, a relação analógica, entre o processo de reflexividade vivido durante a pesquisa (análise dos discursos produzidos no diário) e a relação analógica com as ideias de Morin (2015), referentes ao pensamento complexo, como meio de surgimento de percepções em torno das relações de complexidade e reflexividade suscitadas durante, e após a participação em situações de ensino, nas disciplinas do Curso de Psicologia.

Para tanto, infiro que toda a ação de pensamento é complexa e envolve o diálogo com as próprias ideias, o conhecimento subjetivo que fomenta a relação de recursividade entre ações do conhecer, interpretar e aprender, na medida em que, quando penso sobre cada explicação, pondero sobre o significado atribuído a esta, a interpretação tecida e o encaminhamento do pensamento em relação a esta. Para Morin (2015):

Nosso conhecimento, apesar de tão familiar e íntimo, torna-se estrangeiro e estranho quando desejamos conhecê-lo. Desde o início, estamos situados diante do paradoxo de um conhecimento que não somente se despedaça desde a primeira interrogação, mas que também descobre o desconhecido em si mesmo e ignora até mesmo o que significa conhecer (p.17).

A habilidade de pensar sobre a própria construção conceitual sobre o fazer psicológico, sob o ponto de vista analógico da complexidade do pensamento em Morin (2005) é a tomada de consciência sobre como o processo formativo que retroalimenta o próprio processo de reflexividade sobre a futura atuação, sobre perspectivas de abordagem, ou mesmo sobre a o que é o fazer psicológico a partir do princípio de pensar e sentir! Os excertos III e IV compõem neste texto, sobre o envolvimento, a que me disponho a operar com o pensamento de forma sensível frente a cada experiência formativa situação, que se constitui como objeto de aprendizagem, de tal forma que passa a operar de forma dialógica com os elementos presentes naquela realidade e a produzir conhecimento sobre. 

Excertos III e IV- Diário de bordo (2021, 2022, 2023) – disciplinas: Teorias Psicológicas II e Introdução a Psicologia Clínica.

Fonte: Diário de bordo autoral (2021, 2022, 2023).

A ação de escrita reverbera no pensamento de aprendiz/estudante tornando-se recursiva, para o próprio eu intelectual. Nesta trajetória de contar/tecer sobre o próprio pensar, sentir em relação ao fazer psicológico e, em relação ao fato deste aprendizado promover mudanças de pensamento – suscitar reflexões– sobre legitimidade e viabilidade na trajetória da formação acadêmica.

 A seguir, a figura II explicita o viés comparativo entre o processo de reflexividade desencadeado pelas escritas e a teoria da complexidade de Morin (2015), utilizando como figura-fundo uma arte em crochê- figura análoga ao processo cíclico e constante de pensamento complexo no processo de aprendizagem- onde a cada laçada da linha entre os dedos pela agulha há um traçado constante e recursivo de tecer guardanapo em crochê-aprendizados. A arte de tecer/escrever, compõe com os aprendizados sobre o fazer psicológico, com a ação dialógica de retroalimentação em termos de construção de significados e arte de contar.

Figura II – Perspectiva cíclica análoga entre reflexividade, como tomada de consciência, trabalho em crochê x ideias de Morin (2015).

Fonte: Maman (2023).

O tecer com linhas sendo analogicamente apresentado como o movimento cíclico e de entrelaçamento expondo uma relação dialética de pesar, sentir e refletir sobre o próprio aprendizado. A prática de reflexividade, no diário de bordo, constitui um processo de aprendizagem, na medida em que cada documentação conceitual caracteriza um movimento de aprendizado sobre o próprio aprendizado. Desta maneira, ao observar os conceitos construídos nas documentações conceituais surgem duas posturas autorais: objetiva e subjetiva, quando passam a interagir, conviver e a trocar ideias nas documentações conceituais, no sentido de estabelecer relações interdisciplinares. As palavras-chave, para caracterizar este operador cognitivo seriam a percepção desenvolvida e toda a singularidade, diante de um todo complexo.

O interesse, neste estudo, foi o debruçar do olhar sobre documentações conceituais produzidas a partir da reflexividade sob a perspectiva epistemológica de Morin (2015), como modelo de produção, organização, validação e transmissão presentes na base dos conhecimentos, na medida em que fissuras de pensamentos podem promover relações conceituais possibilitando a organização da ciência pluridimensional e transdisciplinar dos conceitos construídos por meio da experiência cognitiva

O uso da linguagem sob a forma de documentação-narrativa-conceitual, para a decodificação, interpretação e representação das aprendizagens advém da realidade vivida nas três primeiras séries do Curso de Psicologia: os sentidos, os significados – mostram o percurso da aprendizagem desde a articulação do pensamento até a evolução deste, com base na experiência sócio-histórica, pois as escritas no diário se tornam “capsula atemporal” da experiência, conserva-se, para que se possa voltar a ela sempre que se desejar!

Escrever constitui, naturalmente, um esforço que ao mesmo tempo transforma experiências vividas em discursos, narrativas com envolvimento pessoal. O diário de bordo constitui um contexto narrativo pessoal onde escrever e ao mesmo tempo refletir o que escrevo propicia pensar e alcançar uma certa distância da ação e ver as coisas e a nós mesmos em perspectiva (Zabalza, 2004).

Assim, a ideia estabelecida a partir da ação de reflexividade é que na medida que, de maneira dialógica e recursiva, formas de pensamento são postas sob a arte do contar, o campo do exercício profissional do psicólogo por movimentos contínuos e articulados é posto em composição em realidades amplas e complexas com o sentir, o pensar e o fazer psicológico!  

Referências

BISHOP, I. (1902-1988). Imagem de fundo.

BRASIL. Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação/ Câmara de Educação Superior. Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia. Brasília, 2011.

DELEUZE, G. (2011) Nietzsche e a Filosofia. Portugal: Rés-Editora.

DIÄRIO DE BORDO.  (2021, 2022, 2023) Sobre o sentir, o pensar e o fazer psicológico. Escrita autoral- Daniela De Maman. (excertos e imagens).

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 21ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

PORLÁN, R; MARTÍN, J. (1997). El diário Del professor: un recurso para La investigación em la aula. Sevilla: Díada.

DE MAMAN, D. (2016).Interações discursivas sobre perfis, mudanças e evoluções conceituais no ensino de ciências. Tese de Doutorado. Pelotas/RS.

MORIN, E. (2015). O método 3: conhecimento do conhecimento. Tradução de Juremir Machado da Silva. 5a ed. Porto Alegre: Sulina.

STAKE, R. E. (2011). Pesquisa Qualitativa, estudando como as coisas funcionam. Porto Alegre: Editora: Penso, 2011.

ZABALA, A. (1998). A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed Editora.

ZABALZA, M. A. (2004). Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional. Porto Alegre: Artmed.

Como citar esse texto

ABNT — MAMAN, D. Tessituras de composição com a psicologia: arte de contar. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/tessituras-de-composicao-com-a-psicologia-arte-de-contar/Acesso em: __/__/___.

APA — Maman, D. (2023). Tessituras de composição com a psicologia: arte de contar. CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/tessituras-de-composicao-com-a-psicologia-arte-de-contar/