Prezadas, prezades, prezados, boa tarde!
Iniciamos essa fala comentando que, as reflexões aqui apresentadas foram acumuladas pela equipe de psicólogas que atuam em diferentes áreas do Conselho Regional de Psicologia do Paraná, em diferentes gestões, e compiladas neste texto pelo colega de profissão e trabalhador da Autarquia, o psicólogo Altieres Edemar Frei.
Saudamos ao gabinete da Deputada Ana Júlia pela iniciativa corajosa, urgente e escorregadia na contemporaneidade. São muitos os desafios que conclamam para a potência dessa Frente Estadual lançada aqui. Destacaremos alguns pontos que nos são caros na defesa de uma ciência e profissão atrelada, de forma intransigente, à defesa dos Direitos Humanos.
Sabemos que o projeto de uma Reforma Psiquiátrica no Brasil vem com um acento da Luta Antimanicomial. Não consideramos ser possível falar da reforma dos modelos de atenção à saúde das pessoas portadoras de sofrimento mental, sem falarmos da luta antimanicomial.
Como temos dito em nossas campanhas em alusão ao Dia da Luta Antimanicomial, 18 de maio, não podemos tolerar uma reforma psiquiátrica aséptica que se resume a “tornar menos pior” os espaços de confinamento e isolamento de pessoas; é preciso desmontar o manicômio e, com isso, sua lógica que se infiltra em diversos equipamentos, ainda que revestidos sob o signo de equipamentos da Reforma Psiquiátrica.
Cabe aqui uma breve contextualização: será que temos, de fato, uma Reforma Psiquiátrica atrelada à Luta Antimanicomial no Estado quando deparamo-nos com pessoas que fazem tratamento em CAPS há dois, três, quatro anos? Será que conseguimos implementar esse projeto político de sociedade e acolhimento das diferenças quando “naturalizamos” a pecha de que “todo dependente químico sofre de uma doença incurável”, e que a única forma de lidar com isso é por meio do viés da abstinência, muitas vezes a custo de internações nas instituições que se autointitulam Comunidades Terapêuticas? Será que quando espalhamos ambulatórios como resposta do paradigma biomédico ao mal-estar na contemporaneidade estamos dando passos em direção à Reforma Psiquiátrica atrelada à Luta Antimanicomial ou, com isso, estamos ratificando um modelo de cuidado biomédico que deixa ao encargo dos psicofármacos e das abordagens dos ditos especialistas toda uma perspectiva de “doença mental” sob uma lógica individualista?
São questões caras para todos nós.
Desde os trabalhos pioneiros de Paulo Amarante temos aprendido que não basta uma Reforma Psiquiátrica que se detenha somente em uma de suas dimensões, seja a da transformação dos equipamentos asilares, seja a da formação e qualificação dos trabalhadores, seja a da dimensão jurídica ou sociocultural deste projeto. Não basta fortalecer um caminho, se deixarmos necrosar o outro. É preciso um arranjo, um conglomerado de forças para que possamos avançar, de forma simultânea, nestas quatro frentes.
Tomando um exemplo: o sistema dos ambulatórios em saúde mental dá conta, em partes, de uma demanda importante dos chamados casos leves ou moderados, também pode ser eficaz nos processos de transferência de cuidado das pessoas que fazem tratamento nos CAPS para os respectivos territórios de abrangência, regidos pela Atenção Primária em Saúde. Mas esta não pode ser a única oferta a ser pleiteada para ampliação e fortalecimento da RAPS, a Rede de Atenção Psicossocial no Estado.
Para esse sistema, de fato, se efetivar, é preciso, ao nosso ver, de forma urgente e intransigente, avançarmos rumo à ampliação dos cuidados em saúde mental na Atenção Primária em Saúde. É de lá que o sujeito parte, é para lá que o sujeito volta quando estabilizados seus diferentes quadros de sofrimento mental. Somente quando as Unidades Básicas de Saúde estiverem, de fato, aparelhadas e com sustentação para cuidar das pessoas também em suas questões de saúde mental, é que poderemos celebrar a implantação da Luta Antimanicomial no Brasil. Enquanto isso não acontece, falamos sempre de um projeto em construção.
Por isso, o Sistema Conselhos de Psicologias vem, há décadas, se ocupando desses debates, como no caso da composição das Referências Técnicas para atuação da Psicóloga na Atenção Básica à Saúde, ou como no caso da recém lançada Nota Técnica 17/2022 que orienta a distribuição dos diferentes saberes da psicologia no âmbito da organização dos serviços.
Em comum, esses documentos apontam para uma direção parecida à que o próprio SUS aponta: a construção de um modelo de saúde pautado na ideia de uma saúde coletiva, e não na ideia de uma saúde individual. Este modelo, o da saúde individual, é o que vê os fenômenos do sofrimento psíquico como “doença mental”. É um mal a ser combatido, uma chaga a ser expurgada.
No modelo da saúde coletiva, sinto informar-lhes, o buraco é mais embaixo: não é só o sujeito que sofre, é o território que adoece e, por conta disso, esses sujeitos acometidos por diferentes graduações de sofrimento mental acabam sendo porta-vozes ou sintomas de um outro adoecimento, social, coletivo, político, que aponta, em última análise, para as formas com as quais temos encontrado ou perdido no âmbito da vida comunitária. Muitos temores nascem do cansaço e da solidão, conhecemos bem a canção.
Por isso herdamos dos muitos teóricos do campo a proposição de trabalharmos não com a doença mental, mas com a saúde mental. Parece uma mera troca de palavras mas, ressaltamos, palavras mudam mundos.
Trabalhamos não só com os casos deflagrados de sofrimento mental, como o caso das psicoses, depressões, transtornos afetivos bipolares ou usos abusivos de álcool e outras drogas – notem que não dissemos “dependência química”. Trabalhamos com a perspectiva da promoção da saúde mental, por isso urge a chamada “clínica ampliada”: a clínica do território, a clínica da cultura, a clínica que alcança discutir e inferir sobre aquilo que chamamos na seara psicológica dos Processos de Subjetivação. Isso vai muito além das campanhas ao estilo “Janeiro Branco”.
Por isso, ressaltamos, não basta fechar manicômios, ou convertê-los às suas versões “soft” de pisos encerados e com o chamado “cuidado humanizado”, como foi possível constatar na pesquisa de campo efetivada por este Conselho Regional de Psicologia intitulada Cartografia da RAPS do Paraná, que visitou mais de 65 equipamentos em saúde mental em 35 municípios, durante os anos de 2018 e 2019.
É preciso, de fato, avançar na construção de uma rede substitutiva que dê conta da complexa inserção social do sujeito em sua comunidade: nos referimos à atenção primária em saúde com estrutura das equipes mínimas de saúde mental, mas também com os devidos suportes do apoio matricial em saúde mental, como é o caso dos NASFs, agora as recém propostas equipes E-Multis. Também nos referimos a construção e sustentação de espaços potentes para convivência comunitária, como é o que propõe os Centros de Convivência e Cooperativa, atrelados, no organograma da RAPS, à rede de atenção primária em saúde. Falamos do avanço das Unidades de Acolhimento Transitória e dos Serviços Residenciais Terapêuticos como suporte para o cuidado das pessoas em quadros agudos de sofrimento mental, mas também como alternativa ao modelo manicomial perpetuado por grande parte das assim autointituladas Comunidades Terapêuticas. Sem esses equipamentos, faremos pontes pela metade, onde restam a alguns o salto heróico para o outro lado do precipício e a outros tantos, o salto quase suicida rumo a tentativa de agarrar- se a algo em sua transposição.
O Sistema Conselho de Psicologias está atento à estas questões. Viabilizamos a parceria para composição de importantes documentos no campo, como os Relatórios Nacionais de Inspeção aos Hospitais Psiquiátricos, produzido em 2019, ou o Relatório Nacional da Inspeção em Comunidades Terapêuticas, lançado em duas edições. Vocês podem acessar esse material nos sites e canais do Sistema Conselhos de Psicologias. Ali constatamos uma série de violações ao campo dos Direitos Humanos que tem ensejado nossos esforços na tríade da orientação, fiscalização e disciplinarização do exercício profissional.
Não temos nos furtado no CRP-PR aos esforços para articulação do Controle Social, por meio de suas diferentes instâncias de representação periódica, como o caso dos conselhos municipais e estadual de saúde e políticas sobre drogas, como também em suas instâncias sazonais, como no caso das diferentes etapas das conferências de saúde, política sobre drogas e também Conferência Nacional de Saúde Mental, este ano convocada para dezembro.
Zelamos, por fim, em coerência às últimas campanhas da Luta Antimanicomial organizadas por este conselho, que não é possível falar de uma Luta Antimanicomial sem pautar as chagas do racismo, do capacitismo e do proibicionismo em nossa sociedade.
Em nossa campanha “Vidas Lokas Importam”, todo manicômio, assim como todo camburão, guarda consigo semelhanças com os navios negreiros. Qual é a cor da pele da maior parte das pessoas que estão internadas nesse momento? Será essa uma mera coincidência?
Assim como, cabe aqui, o acento de que defendemos também uma luta antimanicomial que seja anticapacitista. Nossa proposta não se resume a “curar” pessoas, é tratar o espaço social e suas formas de subjetivação. Este mundo deve ser acessível a todas, todos, todes.
Por fim, ressaltamos: temos uma questão urgente no âmbito do manejo e cuidado para pessoas com sofrimentos decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas. Precisamos discutir as chagas da Guerra às Drogas, que na verdade, é o mote para outra guerra: às pessoas pretas, pobres, periféricas.
Precisamos fortalecer espaços de cuidado como os CAPS AD. Temos, infelizmente, visto exemplos que vão na contramão dessa urgência: o município de Curitiba juntou o CAPS com o CAPS AD criando uma “gambiarra” chamada Caps Territorial ou CAPS Híbrido que, na prática, não se sustenta quando espelhadas as portarias e normativas federais.
Como isso foi possível, senhoras deputadas, senhores deputados? Como temos um tipo de serviço especificado pelo Ministério da Saúde em âmbito federativo e um município da federação resolve fazer diferente, em nome de uma pretensa organização territorial que, na prática, acaba “otimizando” números e dados? Trata-se de melhorias ou sucateamento? Tudo isso nos interessa.
Não nos opomos ao fato dessas clínicas do campo álcool e drogas e dos demais sofrimentos em saúde mental ocorrerem em um mesmo lugar. É bom deixar isso nítido. Mas defendemos que esse lugar é o da atenção primária, quiçá o da atenção terciária, não o da atenção secundária. Quando falamos em saúde mental, falamos em diferentes níveis de cuidado, e há momentos em que o sujeito precisará da atenção especializada – esta atenção especializada ou secundária, como o nome diz, precisa ser específica, refinada, precisa, de fato, se inclinar sobre os sujeitos e as especificidades da clínica.
Ao nosso ver, essa junção dos CAPS que, infelizmente, tem sido copiadas por outros municípios da Região Metropolitana de Curitiba, como o caso recente de Pinhais/PR, presta-se a um desserviço, é um retrocesso nas conquistas da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial.
Sem isso, sem o fortalecimento dessas clínicas, os espaços manicomiais nadam de braçadas na disputa pelo lucro e pelas formações de viés biomédico que são perpetuadas nestes espaços.
Temos muito trabalho pela frente.
Contem com o empenho deste Conselho Regional de Psicologia do Paraná e nossa disposição para diálogos nesta empreitada.
Muito obrigada.
ABNT — FREI, A. E., COSTA, A. L. B. Texto Lido Na Assembleia Legislativa Do Estado Do Paraná Na Ocasião Da Primeira Reunião Da Frente Parlamentar De Proteção À Saúde Mental (09ago23). CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/texto-lido-na-assembleia-legislativa-do-estado-do-parana-na-ocasiao-da-primeira-reuniao-da-frente-parlamentar-de-protecao-a-saude-mental-09-ago-23/. Acesso em: __/__/___.
APA — Frei, A. E., Costa, A. L. B. Texto Lido Na Assembleia Legislativa Do Estado Do Paraná Na Ocasião Da Primeira Reunião Da Frente Parlamentar De Proteção À Saúde Mental (09ago23). CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/texto-lido-na-assembleia-legislativa-do-estado-do-parana-na-ocasiao-da-primeira-reuniao-da-frente-parlamentar-de-protecao-a-saude-mental-09-ago-23/