Revista CadernoS de PsicologiaS

TTexto Lido na Solenidade do Día de La Psicología Latinoamericana (Brasil y Uruguay)

Griziele Martins Feitosa
Psicóloga (CRP-08/09153), atual Conselheira-Presidenta do CRP-PR - E-mail: griziele.feitosa@crppr.org.br
#Cadernos_técnicos_do_CRP-PR

Começo me desculpando por não falar em espanhol; sou uma mulher cis, negra/afroindígena, feminista com uma tiara em tranças nagô cabelos crespos até a altura dos ombros. Uso óculos de grau rosado, batom vermelho e um vestido branco que suas mangas se abrem em formato de asas e tem um tecido colorido.

Estou honrada e quero agradecer a oportunidade que as entidades brasileiras me dão e me atribuem ao me indicar para compor essa mesa, essa atividade com pessoas tão caras a psicologia latino-americana como o professor Ignacio Doble que é referência de luta e produção teórica a todos nós! Entonces gracias a ustedes!

[Em relação ao tema] Perspectiva Jovem sobre a Psicologia Latinoamericana, não sei se o que trago é jovem, porém muito atual no debate brasileiro. Entendo que na minha auto descrição esse tema já aparece, e vou tentar dialogar com ela para trazer as proposições teórica que entendo pertinentes, mas quero trazer para compor o cenário um texto de Galeano: “Elas levam a vida nos cabelos” [2]:

“Por mais negros que crucifiquem ou pendurem em ganchos de ferro que atravessam suas costelas, são incessantes as fugas nas quatrocentas plantações da costa do Suriname. Selva adentro, um leão negro flameja na bandeira amarela dos cimarrões[AEF3] [G4] [G5] . Na falta de balas, as armas disparam pedrinhas ou botões de osso; mas a floresta impenetrável é o melhor aliado contra os colonos holandeses. Antes de escapar, as escravas roubam grãos de arroz e de milho, pepitas de trigo, feijão e sementes de abóbora. Suas enormes cabeleiras viram celeiros. Quando chegam nos refúgios abertos na selva, as mulheres sacodem a cabeça e fecundam, assim, a terra livre.” (Galeano, 2013)

Um debate que estamos fazendo nos países latino-americanos é sobre o colonialismo ou decolonial. Mas os dois últimos eventos latino-americanos que participei tem me provocado a pensar de qual lugar, de qual herança colonial a psicologia tem pensado, falado e produzido teoricamente? Onde estão? Como pensam, falam, pensam e produzem os povos originários da nossa América Latina? Poucos foram vistos no nosso último congresso e a maioria dos que lá estavam eram indígenas psicólogos de território brasileiro — e pouco prestigiados na sua última mesa pelos herdeiros brancos decoloniais .

Este cabelo que serviu, como lindamente nos conta Galeano, para carregar semente até os quilombos mapeados nas tranças e nas nagôs a fecundar o chão é modelo resistência e luta desde o Brasil Colônia. A filósofa negra Sueli Carneiro, aponta que a pobreza tem cor no Brasil; então para entender o desenvolvimento capitalista brasileiro é preciso entender sobre raça e racismo, pois este é estrutural e estruturante por aqui. É preciso deixar nítido que o racismo brasileiro é anti-indígena e antinegro. A dor tem cor!

No texto publicado em 2002, no Correio Braziliense, Sueli Carneiro vai mostrando como as outras áreas do saber já tem acumulo sobre desconstrução do mito da democracia racial e para explicar as desigualdades raciais existentes, notadamente entre negros e brancos no Brasil. [A autora aponta ainda] que economistas vem qualificando mais a magnitude dessa desigualdade a ponto de podermos afirmar que vivemos em um país apartado racialmente, dadas as disparidades nos índices de desenvolvimento humano encontrados entre brancos e negros. A discriminação racial produz danos psíquicos.

A crítica feita por Sueli Carneiro em 2002 é que a Psicologia é uma das áreas das Ciências Humanas que menos tem contribuído para minimizar o problema e sobretudo diminuir o problema que ele provoca. De 2002 para 2023 avançamos, mas ainda pouco. Estamos como ciência e profissão atrasados e devemos isso a 56% da nossa população, segundo o movimento negro e 54% de pessoas autodeclaradas segundo o último censo, quando estas pessoas chegam aos serviços de psicologia se deparam com profissionais que não entendem a dimensão ético-polítca do racismo.  E quando nós psicólogas negras e indígenas trazemos tal debate somos acusadas de identitárias, não reconhecem a base material que forja nossa sociedade.

Então, me causou espanto perceber que mesmo atrasados, o Brasil está à frente em produção teórica em relação aos demais países da América Latina. Recentemente, vindo de outro congresso no Uruguai, conheci Victor Miguel Moreno da Colômbia, que relata sobre as dificuldades estruturais que o racismo impõe em seu país e a necessidade de discutirmos sobre.

Denúncia feita, acho que a retomada de autoras apagadas historicamente, mas preservadas pelo movimento negro como Lélia Gonzales, traz a possibilidade de pensar caminhos de construirmos uma psicologia latino-americana. Para traçar algumas pistas, vou trazer alguns conceitos apresentados por ela: Lelia cunha a categoria político-cultural amefricanidade.

Então, pensando a formação histórico-cultural do Brasil, pelas condições geográficas e segundo a autora também inconsciente, que é uma América africana cuja latinidade, por inexistente teve trocado o t pelo d América Ladina (então Lelia vai dizer que não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no racismo o seu sintoma por excelência). Lelia também cunha um outro termo que é o pretuguês é a marca da africanização do português falado no Brasil, o colonizador chamava os africanos de pretos e os nascidos no Brasil de crioulos.

Perguntei antes de que lugar da herança colonial cada um de nós fala do colonialismo. Estou falando como amefricana pelos pressupostos teóricos de Lélia Gonzáles.  Entendendo que o colonialismo europeu, decorrente da segunda metade do século XIX, mesmo período em que o racismo se construía como a ciência da superioridade eurocristão branca, patriarcal; referencial das classificações triádicas do evolucionismo positivista das nascentes ciências do homem como ainda hoje direciona a produção acadêmica ocidental. Importante marcar que a fonte pré-colonial dos séculos XV a XIX considerava as manifestações culturais de outro povos como “selvagens” e isso dá base para a violência etnocida e destruidora das forças do pré-colonialismo europeu sobre esses povos.

Agora, em face da resistência dos colonizados, a violência assumiria novos contornos, mais sofisticados. As formas de opressão foram diferentes na África do Sul com a segregação dos grupos não-brancos e, nas sociedades de origem latina temos o racismo disfarçado ou por denegação, prevalecendo a teoria da miscigenação, da assimilação e da democracia racial. Então Lelia aponta que a América Latina é muito mais ameríndia e amefricana do que qualquer outra coisa, fruto do racismo por denegação, fazendo com que o racismo latino-americano seja tão sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmento de classe mais exploradas, graças a uma forma ideológica muito eficaz: a ideologia do branqueamento.

Entraremos em uma outra categoria muito importante para pensar o nosso avançar- amefricanidade: as implicações políticas e culturais desta categoria são de fato democráticas e, porque o termo nos permite ultrapassar as limitações territoriais, [também] linguísticas e ideológicas, dando novas perspectivas para o entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta a América como um todo ? Amefricanidade incorpora todo o processo histórico da intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas).

Foi preciso apontar este não-olhar, este não-pensar, não-falar, e não-teorizar da Psicologia para que possamos entender, como nos aponta a socióloga peruana Virginia Vargas, que é nos movimentos populares que encontramos maior participação das mulheres afro-americanas- e ameríndias.  Preocupadas com o problema da sobrevivência familiar, [estas] procuram se organizar coletivamente, e sua presença sobretudo no mercado informal as remete a novas demandas. Da sua posição social, articulada com a discriminação racial e sexual, são elas que sentem mais profundamente o efeito das crises.

O professor cubano Jorge Torralbas disse que a polarização política que vimos aqui no Brasil encontra-se em toda esfera global, inclusive em Cuba. Então, como nos apresentou Virgínia Vargas, são as mulheres afro-americanas e ameríndias as primeiras a sentirem o repuxo.

Por fim, quero dizer que as perspectivas talvez não tão novas da psicologia latino-americana venham na [direção da] superação das opressões patriarcais, capitalistas, na construção de uma psicologia antirracista, antilgbtfobica, feminista, comprometida socialmente com mulheres ameríndias, afrolatinas ocupados os espaços de construção desta psicologia.

 Gracias!

Notas

[1] Para saber mais sobre o evento, acesse notícia vinculada nas Redes Sociais do CRP PR a partir do link: https://www.instagram.com/p/CxoKJKNuo0X/

[2]  GALEANO, E. Mulheres. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2013.

Como citar esse texto

ABNT  FEITOSA, G. M. Texto lido na solenidade do día de la psicología latinoamericana (brasil y uruguay). CadernoS de PsicologiaS, n. 5, 2023. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/texto-lido-na-solenidade-do-dia-de-la-psicologia-latinoamericana-brasil-y-uruguay/. Acesso em: __/__/_____

APA  Feitosa, G. M. (2023). Texto lido na solenidade do día de la psicología latinoamericana (brasil y uruguay). CadernoS de PsicologiaS, 5. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/texto-lido-na-solenidade-do-dia-de-la-psicologia-latinoamericana-brasil-y-uruguay/