Revista CadernoS de PsicologiaS

Uso de substâncias psicoativas em pessoas com
transtorno do espectro autista: uma breve revisão bibliográfica

Bruna Mendes da Luz
Estudante
E-mail: dreamfactorygci@gmail.com
Alessandra Helena Triaca
(CRP-08/19764)
E-mail: aletriaca@gmail.com
#Inquietações_teóricas

Resumo: O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição de neurodesenvolvimento caracterizada por déficits na comunicação social e comportamentos repetitivos. Embora historicamente o uso de substâncias psicoativas em indivíduos com TEA tenha sido considerado raro, estudos recentes indicam um aumento preocupante. Compreender essa tendência é fundamental para desenvolver intervenções eficazes e políticas públicas voltadas para essa população. Esta revisão bibliográfica examina a relação entre TEA e o uso de substâncias, ressaltando as consequências negativas, como a diminuição da qualidade de vida e o aumento da carga sobre os cuidadores. Os resultados reforçam a urgência de desenvolver intervenções e políticas públicas específicas para prevenir e tratar o uso de substâncias entre indivíduos com TEA.

Palavras-chave: autismo; uso de substâncias; comorbidades.

PSYCHOACTIVE SUBSTANCE USE IN PEOPLE WITH AUTISM SPECTRUM DISORDER: A BRIEF BIBLIOGRAPHICAL REVIEW

Abstract: Autism Spectrum Disorder (ASD) is a neurodevelopmental condition characterized by deficits in social communication and repetitive behaviors. Although psychoactive substances use in individuals with ASD has historically been considered rare, recent studies indicate a worrying increase. The understanding of this trend is essential to develop effective interventions and public policies aimed at this population. This literature review examines the relationship between ASD and substance use, highlighting the negative consequences, such as decreased quality of life and increased burden on caregivers. The results reinforce the urgency of developing specific interventions and public policies to prevent and treat substance use among individuals with ASD.

Keywords: autism; substance use; comorbidities.

CONSUMO DE SUSTANCIAS PSICOACTIVAS EN PERSONAS CON TRASTORNO DEL ESPECTRO AUTISTA: BREVE REVISIÓN BIBLIOGRÁFICA

Resumen: El Trastorno del Espectro Autista (TEA) es una condición del desarrollo neurológico caracterizada por déficits en la comunicación social y conductas repetitivas. Aunque históricamente el consumo de sustancias psicoactivas en personas con TEA se ha considerado poco común, estudios recientes indican un aumento preocupante. Comprender esta tendencia es fundamental para desarrollar intervenciones y políticas públicas efectivas dirigidas a esta población. Esta revisión de la literatura examina la relación entre el TEA y el uso de sustancias, destacando las consecuencias negativas, como una disminución de la calidad de vida y una mayor carga para los cuidadores. Los resultados refuerzan la urgencia de desarrollar intervenciones y políticas públicas específicas para prevenir y tratar el consumo de sustancias entre personas con TEA.

Palabras-clave: autismo; uso de sustancias; comorbilidades.

O

presente trabalho busca apresentar dados e reflexões sobre o uso de substâncias psicoativas e sua correlação com o autismo. Neste estudo, o objetivo é demonstrar como as perspectivas anteriores das pesquisas e teorias sobre autismo não incorporam dados atualizados, especialmente no que diz respeito às questões psicológicas, cognitivas e emocionais de indivíduos neurodivergentes. Essas questões, muitas vezes negligenciadas, podem agravar o uso de substâncias psicoativas e aumentar o risco de desenvolvimento de transtornos associados.

A estigmatização dos usuários de substâncias psicoativas impõe limitações significativas às políticas públicas destinadas a atender às reais necessidades dessa população. Além disso, a escassez de dados sobre os impactos enfrentados por indivíduos autistas não diagnosticados dificulta análise de dados para compreender quais tratamentos, sejam adequadas à realidade de seus contextos sociais e territoriais. Em vez de chegar a conclusões definitivas, este trabalho busca promover um debate aprofundado sobre o tema, destacando os resultados da pesquisa realizada e questionando o uso de substâncias entre essas populações.

Referencial teórico

O crescente número de indivíduos com problemas de uso abusivo de substâncias tem gerado preocupação na saúde pública. Entre esses indivíduos, diagnósticos de TUS, ou Transtorno por Uso de Substâncias, termo utilizado no DSM-5 para descrever um padrão problemático de uso de substâncias que leva a consequências clinicamente significativas, como prejuízos na vida social, ocupacional ou familiar da pessoa, bem como aspectos de dependência, tolerância e sintomas de abstinência, engloba o uso de qualquer substância psicoativa, como álcool, drogas ilícitas ou medicamentos, esse diagnóstico bem como o que serão mencionados na sequência dizem respeito aos parâmetros da psicologia clínica e utiliza o DSM-5 como base, essas categorias diagnósticas são passíveis de derivações e críticas, não representando a única interpretação possível. Este diagnóstico pode se sobrepor a outros que só são possíveis com indivíduos abstinentes. A compreensão do TEA e TUS concomitante revela que o número de indivíduos com TEA que possuem problemas com uso de substâncias é maior do previsto anteriormente. 

Historicamente, presumia se que o transtorno por uso de substâncias não era um problema para pessoas autistas. O autismo é definido de maneira relativamente nova, aparecendo no DSM apenas a partir de 1980, os diagnósticos eram exclusivos apenas a indivíduos com alto grau de comprometimento, o que tornava sua rede social pequena ou inexistente, altamente dependentes de pais ou cuidadores, que não ficavam sem supervisão. O que pode ter tornado o número aparente de indivíduos TEA e TUS menor, devido a diagnósticos concomitantes como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e TUS. Dando a impressão errônea de que este não é um problema presente nesses indivíduos  (Holmes et al., 2024) .

Estudos recentes demonstram que, pacientes com TEA diagnosticados após 1996 com o CID-10, segundo os critérios do DSM-5 aparentemente têm maior risco de problemas relacionados ao uso de substâncias, práticas diagnósticas anteriores podem ter excluído pacientes autistas com problemas relacionados ao uso de substâncias ou atribuído outros diagnósticos a eles.  (Påhlsson‐Notini et al., 2024) 

A pesquisa realizada aponta que os dados de estudos mais recentes associam o maior número de indivíduos TEA com problemas de uso de substâncias a aspectos como, mudanças nos manuais diagnósticos, que passaram a incluir uma gama mais ampla de indivíduos TEA, e ao fato histórico de que pesquisas sobre o tema não eram realizadas por uma concepção anterior de que autistas não eram expostos a situações onde o uso fosse possível o que acarretou em diagnósticos equivocados, visto que o uso era considerado fator que excluía a possibilidade de diagnósticos TEA. No entanto, de fato, mais de 40% dos adultos com TEA são afetados por pelo menos um outro transtorno mental, incluindo transtornos de ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), transtornos afetivos, psicose e transtorno de estresse pós-traumático. (Carpita et al., 2023)  

Os dados coletados por meio desta revisão bibliográfica evidenciam a necessidade de novos estudos que explorem a dimensão real dos impactos decorrentes da confusão diagnóstica em indivíduos com problemas relacionados ao uso de drogas, bem como as consequências que essa situação gera na sociedade. A reincidência no uso e abuso de substâncias é uma realidade comum; assim, é fundamental compreender a dinâmica entre os tratamentos disponíveis e aqueles indivíduos que não conseguem se adaptar ou aderir aos métodos convencionais. Essa compreensão deve ser um foco de análise em pesquisas futuras. Além disso, os tratamentos e acompanhamentos psicológicos disponíveis, bem como as estratégias e ferramentas que podem ser aplicadas para obter melhores resultados na população autista que utiliza substâncias psicoativas, são limitados e suscetíveis a críticas e questionamentos. Essa situação é ainda mais preocupante, pois esses tratamentos frequentemente não contemplam uma abordagem integrativa da psicologia, desconsiderando aspectos psicológicos relevantes e focando apenas nos critérios clínicos definidos pelo DSM-5.

Método

O objetivo desta revisão narrativa foi examinar a relação entre indivíduos com TEA e o uso de substâncias, considerando as implicações para o sujeito e as consequências para a saúde pública. A busca dos artigos ocorreu na base de dados da National Library of Medicine (PubMed) no período de 2014 a 2024, utilizando os descritores: “autism”, “substance use disorder”, e “comorbidity”. A seleção dos estudos visou garantir a relevância e a qualidade das evidências analisadas. Foram incluídos estudos de ensaios clínicos, revisões sistemáticas e meta-análises. Estudos descritivos compostos exclusivamente por relatos de casos ou que fugissem muito do tema central foram excluídos. Ao final, foram selecionados seis artigos que abordam o tema, dos 22 resultados encontrados.

Resultados

A revisão da literatura revelou que embora existam poucos estudos na área, problemas por uso de substâncias afetam a população autista. Esse aumento no número de diagnósticos de TUS e TEA concomitantes demonstra que a visão anterior que se tinha relacionado a população autista era equivocada e baseada em uma ideia capacitista de que autistas não teriam acesso a substâncias devido sua falta de habilidade para engajamentos sociais e menor rede social. Nos critérios diagnósticos de DSM-5 para autismo, estão presentes os níveis de gravidade ou necessidade de suporte para as atividades da vida diária. A partir da quinta edição, o TEA passa a ser dividido em 3 níveis diferentes: leve, moderado e severo. As mudanças trazidas no DSM-5 incluem indivíduos autistas sem deficiências intelectuais e sem comprometimento de linguagem, o que aumentou o número de diagnósticos de TEA.

Para compreender quais fatores podem influenciar nesse aumento percebido de TUS entre a população TEA, no artigo “Substance use-related problems in mild intellectual disability: A Swedish nationwide population based cohort study with siblings comparison”, buscou se avaliar os riscos de problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas em indivíduos com deficiência intelectual leve em comparação com a população em geral, para levar em conta a confusão familiar também foram feitas análises de comparação entre irmãos. Neste estudo, problemas relacionados ao uso de substâncias foram medidos por meio de códigos diagnósticos e legais correspondentes, que incluíram transtorno por uso de álcool, transtorno por uso de drogas (ilícitas no país, são incluídas drogas depressoras, alucinógenas e estimulantes do sistema nervoso central), doenças somáticas relacionadas ao álcool, condenação por crime relacionado a substâncias e morte relacionada a substâncias. A população mundial diagnosticada com deficiência intelectual soma 1% da população, entre eles 85% tem deficiência intelectual leve, define se deficiência intelectual como a combinação de comprometimento na capacidade cognitiva geral, habilidades adaptativas prejudicadas e início precoce dos sintomas. Os indivíduos com deficiência intelectual leve,  são desproporcionalmente afetados por problemas relacionados ao uso de substâncias, em comparação com indivíduos com deficiência intelectual mais grave, o estudo trás os motivos mais discutidos para o aumento de transtorno por uso de substâncias em indivíduos com grau leve, são eles o maior funcionamento cognitivo e físico, maior independência financeira, maior participação na comunidade e maior acesso a substâncias em comparação com indivíduos com maior grau de deficiência. Embora a maioria dos estudos sobre transtorno por uso de substâncias em indivíduos com essa deficiência não tenha esclarecido o papel da comorbidade psiquiátrica na associação. Os resultados apresentaram os dados de que, de um total de 18.307 indivíduos com deficiência intelectual leve 8,1% tiveram algum evento de transtorno por uso de substâncias, em comparação com 4,1% dos indivíduos de referência da população geral (915.350 indivíduos).  

As comparações dos dados entre irmãos e meio irmãos sugere que fatores familiares compartilhados por irmãos completos, contribuem significativamente para a associação entre deficiência intelectual leve e problemas relacionados ao uso de substâncias. Estimativas de risco foram atenuadas nas comparações entre irmãos, indicando que fatores familiares (genéticos/ambientais) possuem papel importante na associação entre o TUS e MID.  (Påhlsson‐Notini et al., 2024) 

Aspectos da condição de indivíduo autista como a sensibilidade interpessoal, inaptidão social, e autopercepção mais negativa podem agravar o uso, outras questões como depressão recorrente, maior incidência de bullying e ansiedade são outros fatores responsáveis por esse agravamento, e o ciclo vicioso traz uma piora das comorbidades. São sugeridas duas razões principais para o uso indevido de substâncias em indivíduos TEA, para se encaixar com seus pares ou se automedicar. Na tentativa de diminuir estímulos sensoriais, aumentar a empatia social, facilitar a interação social, aliviar o estresse e reduzir a ansiedade.

Em uma análise de regressão logística realizada que buscou avaliar a presença de correlatos de características fóbicas sociais entre indivíduos TEA, e quais sintomas de ansiedade social podem ser estatisticamente preditivos de um possível diagnóstico TEA, realizou se a aplicação dos questionários SHY-SV (questionário de avaliação dos níveis de ansiedade social, compreendendo 139 itens organizados em 5 domínios, Sensibilidade interpessoal, Inibição Comportamental, Desempenho, Situações Sociais e Abuso de Substâncias e um apêndice Infância/adolescência) e AdAS Spectrum (questionário de autorrelato, que visa avaliar, em adultos sem comprometimento de linguagem ou intelectual, toda a gama de manifestações do espectro do autismo, composto por 160 itens classificados em sete domínios, Infância e adolescência, Comunicação verbal, Comunicação não verbal, Empatia, inflexibilidade e adesão à rotina, Interesses restritos e ruminação, e hiper e hiporreatividade à entrada sensorial), com uma amostra de 48 indivíduos com TEA e 48 controles saudáveis, os resultados desta regressão logística dos dados coletados destacou a pontuação dos domínios de sensibilidade interpessoal e o abuso de substâncias do SHY-SV como preditores positivos significativos de um diagnóstico TEA. 

O uso de substâncias como o álcool, por exemplo, foi analisado através de pesquisa online através da aplicação de questionários, sendo 94 jovens autistas e 92 jovens fora do espectro, que traz informações como, a exclusão de jovens autistas de programas de prevenção de uso de substâncias. Quatro fatores foram associados a um maior consumo de álcool entre os jovens autistas no último ano, diagnóstico de depressão ao longo da vida, ter sido intimidado ou excluído, pontuações mais baixas no  CAT-Q (questionário de Camuflagem de Traços Autísticos em sua tradução para o português, é uma medida de autorrelato de comportamentos de camuflagem social em adultos, este questionário pode ser usado para auxiliar na identificação de indivíduos autistas que camuflam suas características no dia a dia) e já ter tomado café da manhã/almoço escolar gratuito. Neste estudo, pontuações mais altas no AUDIT-C (versão simplificada do AUDIT, um questionário desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para identificar padrões de consumo de álcool que podem indicar abuso ou dependência. O AUDIT-C concentra-se especificamente em questões relacionadas à quantidade e frequência do consumo de álcool), foram positivas para consumo perigoso de álcool, um total de 9% dos autistas participantes do estudo. De acordo com o autor:

…15% dos jovens autistas que beberam no ano passado relataram consumo episódico pesado de bebidas e 9,3% tiveram resultado positivo para consumo de bebidas perigosas no AUDIT-C. Apenas para jovens autistas, um diagnóstico de depressão, bullying ou histórico de exclusão foi positivamente associado a beber 2+ vezes no ano passado (Holmes 2023).

Entretanto, a pesquisa realizada por Holmes não pôde estimar a prevalência de consumo de álcool por menores de idade no autismo, a amostra do estudo teve participação maior de indivíduos brancos, homens, cursando o ensino superior, o que limita a generalização dos dados. Fatores de exclusão como a concentração em jovens autistas que poderiam completar uma pesquisa de maneira independente, também alteram os dados obtidos, visto que não inclui amostras que representem todos os jovens autistas.

As consequências cotidianas do transtorno por uso de substâncias (TUS) e do TEA ou TEA/TDAH concomitantes, precisa ser compreendida em profundidade para que o tratamento seja melhorado e adaptado para as necessidades dessa população. Para elucidar sobre quais seriam essas consequências do uso na população de pacientes com TEA, a partir do artigo, Everyday life consequences of substance use in adult patients with a substance use disorder (SUD) and co-occurring attention deficit/hyperactivity disorder (ADHD) or autism spectrum disorder (ASD): a patient’s perspective, estudo qualitativo realizado usando entrevistas em profundidade,  os resultados apontam que pacientes com TEA podem ficar presos pensamentos e emoções confusas que muitas vezes podem levar a agitação e impulsividade no caso de TDAH ou passividade e melancolia no caso de TEA com TUS concomitante. 

Os impactos a longo prazo encontrados são negativos, embora o uso de substâncias seja recorrentemente usado como uma ferramenta para resolver problemas relacionados ao TEA e TDAH. Foram apontadas três principais consequências da vida cotidiana de um diagnóstico duplo de TUS e TEA, pensamentos e emoções confusas, ambiguidade do uso de substâncias e estrutura. Pacientes no grupo TUS+TEA expressaram que a sobrecarga de estímulos causada pela confusão de pensamentos e emoções os tornou passivos e melancólicos, relatados como obstáculos à atividade sexual. Apesar do uso trazer piora nos sintomas e problemas decorrentes do TEA e TDAH, o uso foi relatado como ferramenta para escapar do sentimento descrito como puro tédio. Sob a ótica comportamental, o uso de substâncias para escapar do tédio pode ser explicado pelo condicionamento operante. O tédio é visto como um estado aversivo, e o uso de drogas proporciona um alívio imediato, recompensando o comportamento com uma fuga temporária da sensação desagradável. No entanto, isso reforça o uso, criando um ciclo onde a droga é utilizada para evitar ou suprimir emoções negativas, ao invés de lidar com as causas subjacentes dessas emoções. Quanto à estrutura, os pacientes TEA salientaram que mal sabiam como aproveitar seu tempo livre, como engajar em relacionamentos sociais e lidar com assuntos como finanças ou suas casas. (Kronemberg 2014) 

As implicações clínicas do tratamento de TUS não são atualizadas para essa população em específico, métodos convencionais para combater o TUS podem não funcionar com esses indivíduos que são autistas e que, podem ter recebido diagnóstico de TEA após início do uso de substâncias. Os resultados destacam que existe a necessidade de exames psiquiátricos abrangentes ao decidir sobre quais estratégias devem ser tomadas no tratamento por uso de substâncias, com o intuito de prestar o serviço adequado à necessidade individual do paciente (Butwicka 2016). O diagnóstico tardio de autismo pode acarretar em maiores danos a esses indivíduos, pois os transtornos mentais derivados das dificuldades cotidianas podem trazer maior impacto para suas vidas.

As ações apontadas como significativas para essa população, como o início precoce de intervenções que incluam pessoas autistas, infelizmente ainda não existem, a conclusão de estudo realizado, aponta que a única descoberta consistente da pesquisa foi a falta de tratamentos focados nas necessidades de pessoas autistas e a necessidade de mais pesquisas sobre o tema. Outras recomendações de tratamento são a terapia cognitivo comportamental, para que esses indivíduos possam receber incentivos para a abstinência, desenvolver habilidades para recusar substâncias, lidar com gatilhos com a substituição desses comportamentos por atividades que melhorem as habilidades de resolução de problemas, e facilitar relacionamentos interpessoais. A necessidade de que médicos e profissionais que lidam diretamente com indivíduos com problemas de substância saibam dessa associação, se torna imprescindível para tratamentos e tomadas de decisões assertivas que não tragam sofrimento psíquico, ou maiores prejuízos para os pacientes. Tratamentos típicos como grupos de autoajuda e programas de 12 passos, podem provocar ansiedade e raiva em pacientes com TEA, o que pode acarretar em exclusão ou rejeição por parte do grupo. A inabilidade de socialização pode ser interpretada como falta de motivação e ou cooperação, o que pode induzir sentimentos de fracasso e exclusão que podem agravar o abuso de substâncias e piorar os sintomas dos pacientes. Segundo o autor:

Há uma alta prevalência de ansiedade relatada em TEA em geral, e possíveis ligações entre ansiedade e abuso de substâncias como automedicação foram levantadas por vários autores. Cannabis e outras substâncias legais e ilegais foram relatadas como fatores de risco associados à redução da qualidade de vida, transtornos de saúde mental (incluindo tentativas de suicídio) e morte prematura devido a overdoses, acidentes, violência e suicídio (Arnevik 2016) .

Em alguns casos, a abstinência completa pode ser impraticável ou não desejada por indivíduos que usam substâncias como mecanismo de enfrentamento de dificuldades emocionais ou sociais. No caso de pessoas autistas, o uso de drogas pode estar ligado à tentativa de manejar estímulos sensoriais intensos, tédio crônico ou ansiedade social. Assim, o foco exclusivo na abstinência pode ser demasiadamente rígido e até contraproducente, aumentando o risco de recaídas e piorando o quadro clínico geral. 

 

Os resultados da pesquisa para essa revisão bibliográfica, mostram que apesar das abordagens diferentes quanto aos métodos de pesquisa e objetivos, resultados em comum foram encontrados em todas elas. O maior índice de transtorno por uso de substância na população autista, é comum entre eles, os motivos indicados por trás do uso são semelhantes e embora poucas informações tenham sido coletadas a respeito de influências ambientais e genéticas/familiares, elas são observadas em casos de TUS e TEA, e devem ser abordadas como fatores a serem melhor avaliados, para um melhor entendimento.

Discussão

A literatura atual sobre o uso de substâncias em populações específicas, como indivíduos com Transtorno do Espectro Autista (TEA), ainda é limitada em termos de diversidade geográfica e cultural, o que impede uma compreensão global dos padrões de uso e comorbidades. A maioria dos estudos concentra-se em contextos restritos, dificultando a extrapolação de dados para diferentes realidades socioeconômicas. Para enfrentar essa limitação, é crucial que as pesquisas futuras ampliem a abrangência, considerando as especificidades regionais e culturais no tratamento do uso de substâncias em pessoas com TEA. 

Além disso, o estigma social relacionado ao uso de substâncias, combinado com as dificuldades de interação social comuns no TEA, agrava a exclusão desses indivíduos e limita seu acesso a tratamentos adequados. Goffman (2004) discute como a estigmatização pode aprofundar o isolamento social, exacerbando o sofrimento mental e aumentando a reincidência no uso de drogas. Essa exclusão é particularmente perceptível em programas de tratamento de drogas que utilizam terapias grupais, como grupos de autoajuda e programas de 12 passos, que podem ser desafiadores para indivíduos com TEA devido à dificuldade de socialização e adaptação a essas dinâmicas. A baixa adesão a esses programas, causada por problemas como ansiedade social e inabilidade de comunicação, reforça a necessidade de uma abordagem mais personalizada e menos centrada na abstinência total. 

Portanto, é imperativo que futuras pesquisas considerem a estratificação por substâncias e comorbidades associadas, e também as realidades culturais e socioeconômicas específicas do seu território, com o uso de programas de educação e conscientização que reduziam os estigmas e promovam uma integração mais eficaz de indivíduos com diagnóstico de Transtorno de Uso de substâncias na sociedade. Estratégias como a redução de danos, que oferecem alternativas ao foco exclusivo na abstinência, mostram-se promissoras ao proporcionar um ambiente mais inclusivo e humanizado. Essas abordagens buscam melhorar a qualidade de vida e minimizar os riscos, permitindo uma maior adesão ao tratamento e facilitando uma recuperação gradual. Portanto, há uma necessidade urgente de desenvolver políticas públicas que ofereçam diagnósticos precoces e intervenções individualizadas para pessoas com TEA e Transtorno por Uso de Substâncias (TUS). Um tratamento que vá além da abstinência, focando no bem-estar geral e nas interações sociais, pode não apenas melhorar a qualidade de vida dessas pessoas, mas também reduzir o impacto negativo do estigma social associado ao vício. 

Os dados apresentados nesta revisão apontam para a necessidade crítica de mais investimentos em pesquisas e tratamentos para indivíduos com TEA e TUS concomitantes. A falta de conhecimento sobre essa população, especialmente em países como o Brasil, onde os dados são limitados, evidencia o descompasso entre as visões tradicionais do uso de substâncias por pessoas com TEA e a realidade. Conforme observado por Barlow (2016), o tratamento do uso de substâncias deve considerar uma abordagem multifacetada, levando em conta as interações entre fatores psicológicos, sociais e ambientais.

Além disso, é fundamental repensar as abordagens tradicionais, como a Terapia Cognitivo-Comportamental, uma vez que, embora eficaz, ela não é a única opção viável para o tratamento de indivíduos com TEA. A inclusão de outras abordagens terapêuticas pode melhorar tanto a adesão ao tratamento quanto a qualidade de vida. A redução de danos deve ser central nessas estratégias, especialmente para aqueles que enfrentam dificuldades em aderir a programas convencionais de tratamento.

Conclusão

Essa lacuna de conhecimento pode perpetuar estigmas e preconceitos que cercam tanto o TEA quanto o uso de substâncias, resultando em tratamentos inadequados e, muitas vezes, ineficazes. A literatura atual, embora limitada, já aponta para a necessidade de abordagens que não se restrinjam à abstinência, mas que integrem práticas de redução de danos e terapias adaptadas. Somente através de uma compreensão mais profunda e uma abordagem mais inclusiva será possível melhorar os resultados de tratamento e a qualidade de vida para indivíduos com TEA e problemas relacionados ao uso de substâncias.

Dessa forma, uma reformulação das práticas terapêuticas, que incluam uma combinação de abordagens cognitivas, comportamentais e sociais, pode contribuir para um melhor entendimento das necessidades dessa população, ao mesmo tempo que promove maior flexibilidade no tratamento e melhores resultados a longo prazo. 

Referências

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Laura Graham Holmes, Xuan, Z., Quinn, E., Caplan, R., Sanchez, A., Wharmby, P., Calliope Holingue, Levy, S., & Rothman, E. F. (2023). Alcohol Use Patterns Among Underage Autistic and Non-Autistic Youth. Journal of Autism and Developmental Disorders. https://doi.org/10.1007/s10803-023-06086-4

Påhlsson‐Notini, A., Liu, S., Tideman, M., Latvala, A., Serlachius, E., Larsson, H., nHirvikoski, T., Taylor, M. J., Kuja‐Halkola, R., Lichtenstein, P., & Butwicka, A. (2024). Substance use‐related problems in mild intellectual disability: A Swedish nationwide population‐based cohort study with sibling comparison. JCPP Advances, 4(2). https://doi.org/10.1002/jcv2.12225

Arnevik, E. A., & Helverschou, S. B. (2016). Autism Spectrum Disorder and Co-occurring Substance Use Disorder – A Systematic Review. Substance Abuse: Research and Treatment, 10, SART.S39921. https://doi.org/10.4137/sart.s39921

Butwicka, A., Långström, N., Larsson, H., Lundström, S., Serlachius, E., Almqvist, C., Frisén, L., & Lichtenstein, P. (2017). Increased Risk for Substance Use-Related Problems in Autism Spectrum Disorders: A Population-Based Cohort Study. Journal of Autism and Developmental Disorders, 47(1), 80–89. https://doi.org/10.1007/s10803-016-2914-2

Kronenberg, L. M., Slager-Visscher, K., Goossens, P. J., van den Brink, W., & van Achterberg, T. (2014). Everyday life consequences of substance use in adult patients with a substance use disorder (SUD) and co-occurring attention deficit/hyperactivity disorder (ADHD) or autism spectrum disorder (ASD): a patient’s perspective. BMC Psychiatry, 14(1). https://doi.org/10.1186/s12888-014-0264-1

Barlow, D. H. (2016). Manual Clínico dos Transtornos Psicológicos: Tratamento Passo a Passo. Artmed Editora.

Goffman, E. (1988). Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (M. Lambert, trad.). São Paulo, SP: Editora Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1963)

Como citar esse texto

ABNT —  Mendes,  B., Triaca, A.H. : Uso de substâncias psicoativas em pessoas com transtorno do espectro autista: uma breve revisão bibliográfica. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/uso-de-substancias-psicoativas-em-pessoas-com-transtorno-do-espectro-autista-uma-breve-revisao-bibliografica. Acesso em: __/__/___.

APA — Mendes, B., Triaca, A. H. (2024). : Uso de substâncias psicoativas em pessoas com transtorno do espectro autista: uma breve revisão bibliográfica. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/uso-de-substancias-psicoativas-em-pessoas-com-transtorno-do-espectro-autista-uma-breve-revisao-bibliografica.