#Relatos_de_experiência
Resumo: Trata-se de um relato de experiência que tem como objetivo descrever a realização de um projeto de prevenção, realizado pelo Núcleo de Estudos e Defesa dos Direitos da Infância e da Juventude (NEDDIJ), em escolas da rede municipal e estadual, em um município de médio porte. Objetivou-se capacitar as profissionais, a respeito da identificação e do manejo de situações de violência contra crianças e adolescentes, assim como, oferecer um espaço de debate e escuta. Se justifica, considerando a volta das atividades presenciais de ensino, o aumento significativo do número de violências e violações de direitos, e a dificuldade dos profissionais em se adequar neste cenário pós- pandemia.
Palavras-chave: violação de direitos; crianças e adolescentes; professores.
VIOLENCE AGAINST CHILDREN AND TEENAGERS: FORMATIVE STRATEGIES WITH THE EDUCATION NETWORK
Abstract: This experience report aims to describe the work of an prevention project, linked to the Nucleus of Studies and Defense of Childhood and Youth Rights (NEDDIJ), developed on municipal and state schools in a midsize city. The purpose of this project was to enable education professionals on the identification and handling of violence situations against children and teenagers, as well as provide a space of debate and listening. It is justified considering the return of face-to-face activities, the increase of violence and rights violation, and the difficulty of education professionals to adjust to the post-pandemic scenery.
Keywords: rights violation; children and teenagers; professors.
VIOLENCIA CONTRA NIÑOS Y ADOLESCENTES: ESTRATEGIAS DE FORMACIÓN EN LA RED EDUCATIVA
Resumen: Se trata de un relato de experiencia que tiene como objetivo describir la implementación de un proyecto de prevención, realizado por el Centro de Estudios y Defensa de los Derechos de la Infancia y la Juventud (NEDDIJ), en escuelas municipales y estatales, en un medio municipal. El objetivo fue capacitar a profesionales sobre la identificación y manejo de situaciones de violencia contra niños y adolescentes, además de ofrecer un espacio de debate y escucha. Se justifica, considerando el retorno de las actividades presenciales, el aumento significativo del número de violencias y violaciones de derechos, y la dificultad de los profesionales para adaptarse a este escenario pospandemia.
Palabras clave: violação de direitos; crianças e adolescentes; professores.
A violência contra crianças e adolescentes têm marcos históricos e culturais. Para compreendermos como essas violências estão estruturadas e foram por muitos anos autorizadas, precisamos resgatar as concepções de infância e de infâncias construídas. De acordo com Cohn (2013), os estudos sobre as crianças e adolescentes iniciaram centrados no que elas/es viriam a ser ou deveriam ser, somente ao final do século XX começou-se uma busca por entender as crianças pelo que de fato eram, com isso também houve um esforço das/os pesquisadoras/es em ouvir as infâncias, em criar métodos e técnicas de pesquisa.
O estudo de Ariès (1986) acerca da história social da criança e da família revela que o sentimento de infância passou a ser construído a partir de dois momentos significativos: a ascensão da Igreja Católica e Protestante; e o reaparecimento da preocupação com a educação. Na Idade Média, a infância era considerada apenas nos primeiros anos de vida em que a criança necessitava de suporte dos adultos para sobreviver, após esse período ela passava a acompanhar os adultos em todos os seus afazeres e aprender como viver no mundo, sem distinção entre as fases de infância, juventude, adultez e envelhecimento tal como conhecemos hoje. Com a ascensão da Igreja houve o crescimento do moralismo e a criação de um sentimento afetivo em torno da família.
A família deixou de ser apenas uma instituição do direito privado para a transmissão dos bens e do nome, e assumiu uma função moral e espiritual, passando a formar os corpos e as almas. Entre a geração física e a instituição jurídica existia um hiato, que a educação iria preencher. O cuidado dispensado às crianças passou a inspirar sentimentos novos, uma afetividade nova que a iconografia do século XVII exprimiu com insistência e gosto: o sentimento moderno da família (Ariès, 1986, p. 277).
Esse sentimento de família está localizado no Ocidente e em uma concepção eurocêntrica que tem ainda grande influência sobre o modo como a sociedade capitalista do século XXI está constituída, sendo assim, partimos dele para compreender como foi se constituindo o Sistema de Garantia de Direitos que temos atualmente no Brasil, no entanto, é importante destacar que as infâncias são diversas e possuem particularidades em cada realidade e território de existência.
No Brasil, localizamos a Constituição Federal de 1988 como um marco na construção da cidadania e direcionando algumas práticas em torno dos direitos humanos, esse documento pauta as diretrizes de políticas públicas que incluem a proteção e o atendimento à crianças e adolescentes vítimas de violência. Consoante a Constituição de 88, em 20 de novembro de 1989 é aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a Convenção sobre o Direito da Criança, que tem como um de seus princípios a doutrina da proteção integral, nesse mesmo período foi reconhecida legalmente no Brasil o fenômeno da violência intrafamiliar. Segundo Pelisoli e Rovinski (2019),
A doutrina jurídica da Proteção Integral substitui a antiga doutrina da Situação Irregular, de viés assistencialista, e passa a orientar os novos institutos, com base em políticas públicas, que serão criados para a proteção e a garantia de direito das crianças e adolescentes (p. 56).
Dessa forma, as crianças e adolescentes passam a ser sujeitos de direitos. Em 13 de julho de 1990, é publicado a Lei 8.069 – Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), que define as crianças e adolescentes como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e devem ser tratados com prioridade absoluta pela família, sociedade e Estado.
Mais recentemente, foi promulgada a Lei nº 13.431/2017, que normatiza e organiza o sistema de garantias de direito, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência e estabelece medidas de assistência e proteção. A lei define violência física, psicológica, sexual, a violência institucional e pauta a revitimização, a lei aliada ao Decreto nº 9.603/2018 aponta diretrizes específicas para a implementação de ações da rede, incluindo fluxos para atendimento da vítima, escuta especializada e o depoimento especial (Brasil, 2017;2018).
Nesse sentido, a violência contra crianças e adolescentes acompanha a história da sociedade, de forma que era justificada por processos educativos e de disciplinamento desses grupos etários. Segundo Minayo (2001) essas violências com o objetivo de corrigir e punir de forma que são consideradas instrumentos de resposta a desobediências e rebeldias. Essas violações que atravessam a história da sociedade em sua maioria estão ligadas ao âmbito familiar. Desse modo, a violência intrafamiliar, de acordo com o Ministério de Saúde (Brasil, 2001) caracteriza-se como:
A violência intrafamiliar é toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em relação de poder à outra (p.15).
A violência intrafamiliar pode ser dividida em violência física, psicológica, sexual e negligência. Dessa forma, a violência física ocorre devido à exacerbação de poder de autoridade e proteção que um adulto exerce em relação a uma criança. Para Ferreira, Côrtes e Gontijo (2019), o castigo físico é considerado por muitos/as responsáveis como uma maneira de educar e impor limites às crianças que ainda estão em processo de desenvolvimento. “Punições físicas severas se constituem como um grave problema mundial, atingindo crianças de diferentes culturas. A violência física pode, em curto prazo, provocar incapacidade física ou mental e, ainda, ser causa de óbito.” (Ferreira, Côrtes, & Gontijo, 2019, p. 4005)
Outra forma de violência que atravessa o contexto familiar é a violência sexual, que também está ligada ao autoritarismo dos adultos. Segundo Faleiros (2001) as relações abusadoras implicam em tramas de dimensões culturais (gênero, classe, raça), sociais (relações familiares), econômicas, psicológicas (medo, traumas), de sexualidade (culpabilização) e de poder (força/segredo).
Essas tramas se revertem em dramas para as vítimas, significativamente presentes em arranjos familiares autoritários, por sua vez implicando relações sociais divididas. O trauma se faz e se guarda como sofrimento, como perda de si, como exclusão de possibilidades, e pode se mostrar em raiva ou em feridas psicossomáticas muito diversas (Faleiros, 2001, p. 69).
A violência psicológica ocorre quando os adultos desprezam e bloqueiam os esforços de crianças, ou ameaçam abandono e crueldade, ou seja, essa tipificação da violência ao longo do desenvolvimento infantil está relacionada a atitudes depreciativas dos responsáveis em relação às crianças e adolescentes, que as fazem acreditar que não são capazes, amadas e queridas (Abranches & Assis, 2011). Por fim a negligência, esse conceito define um parâmetro de cuidado considerado aceitável socialmente, os/as responsáveis devem ser capazes de promover as necessidades básicas das crianças e adolescentes. Essa determinação, apesar de “considerar” as características de cada cultura de cuidado, universaliza um limite satisfatório de tolerância em relação ao crescimento e desenvolvimento do público infantojuvenil. Essas concepções perpassadas por um caráter biomédico são renegociadas a partir de uma visão comparativa de cuidados possíveis na realidade inserida, aos recursos disponíveis na comunidade “e aos aspectos subjetivos de “compromisso familiar” em buscar atender às necessidades infanto-juvenis.” (Mata, Silveira, & Deslandes, 2017, p.844)
Para atuar no enfrentamento dessas violências e garantir o direito de crianças e adolescentes, foi instituído o Sistema de Garantia de Direitos, que coloca a atuação da rede como primordial para o atendimento integral. A Rede de Proteção é composta pelos campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos direitos humanos. No que tange a denúncia de suspeita de violência contra criança e/ou adolescente, essa pode ser feita diretamente ao Conselho Tutelar, órgão definido pelo ECA como atuante administrativa e judicialmente nos casos de risco à proteção integral, ou através do Disque Denúncia (Disque 100) que irá encaminhar os dados ao órgão responsável na cidade de origem da denúncia.
O Núcleo de Estudos e Defesa de Direitos da Infância e da Juventude (NEDDIJ) de Irati-PR, é um projeto de extensão que, em parceria com a Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) campus Irati-PR, que se coloca como um serviço que atua assegurando os direitos de crianças e adolescentes, fortalecendo o sistema de garantia de direito através da oferta de atendimento jurídico e psicológico, em defesa dos direitos da população em situação de vulnerabilidade social e socioeconômica que estão em risco e/ou que possuem seus direitos violados, dialogando, também, com os demais serviços da Rede de Proteção.
Os demais serviços que compõem esta Rede de Proteção também podem ser a porta de entrada de denúncias e, dessa forma, cabe aos profissionais desse serviço fazerem a notificação compulsória ao Conselho Tutelar de sua região. Caso a criança ou adolescente realize um relato espontâneo acerca de uma violência, a/o profissional da Rede de Proteção deve realizar a Escuta Especializada de forma a evitar a revitimização e acionar os demais serviços necessários para a garantia da proteção integral.
A escola aparece nesse contexto como um espaço formativo e humanizador, que tem o compromisso ético-político na proteção das crianças e/ou dos adolescentes. Com o início da pandemia do COVID-19 e a necessidade do isolamento social, o fechamento das escolas e demais espaços comunitários tornou-se inevitável. De acordo com a UNESCO (2020), esse distanciamento dos espaços educacionais provoca um acréscimo na desigualdade social e a intensificação da disparidade educacional.
Ironicamente, enquanto as medidas de isolamento provocadas pelo coronavírus são organizadas a fim de assegurar a proteção das crianças e adolescentes, essas mesmas medidas acabam por isolar muitos meninos e meninas em lares que não lhe são seguros. Milhões de crianças estão em maior risco de violência psicológica, física e sexual em casa e na sua comunidade. […] Crianças isoladas em casa estão em maior risco de sofrerem violências de seus abusadores – sendo parentes próximos ou membros de sua comunidade – especialmente àquelas que já estavam sendo violentadas (World Vision, 2020, p. 4, tradução nossa).
No ano de 2020 estima que houve um aumento entre 20% e 32% nos casos de violência intrafamiliar. Nessa perspectiva, o Núcleo de Estudo dos Direitos da Infância e da Juventude (NEDDIJ), que é projeto de extensão atuante na Rede de Proteção e visa o atendimento, prevenção e identificação de sinais de violência contra crianças e adolescentes, percebeu a necessidade de realizar um espaço de escuta e formação com professoras e demais trabalhadores da rede educacional, com o objetivo de ampliar a discussão do presente tema.
O NEDDIJ, como explicitado anteriormente, possui uma equipe multidisciplinar composta por profissionais e estudantes do direito e da psicologia. Compõe a rede como um serviço de atendimento psicojurídico a crianças e adolescentes, e atua próximo ao sistema socioassistencial no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), por isso, possui uma atuação conjunta com os outros equipamentos que compõem a política de assistência, caracterizando, assim, um fazer transdisciplinar. A transdisciplinaridade, para a análise institucional, se caracteriza por processos que provocam a migração de conceitos e a exploração de outros territórios, gerando um diálogo transformador que permite a articulação entre diferentes campos de atuação e de saberes, construindo um fazer integralizado (Romagnoli, 2012).
As diretrizes de um projeto de extensão se caracterizam pelo conjunto entre prática e produção científica, que visa o compartilhamento do saber científico a partir das experiências em um projeto e o contato da universidade com a comunidade. Esse modo de operar objetiva construir uma atuação que instiga o conhecimento e a produção científica e impacta ao mesmo tempo a comunidade. Para isso, o NEDDIJ oferece atendimentos jurídicos, psicológicos e psicojurídicos atuando, principalmente, no âmbito da proteção e garantia dos direitos, mas também no âmbito da prevenção.
No que diz respeito à prevenção surgiu, a partir de uma demanda do município, o projeto de intervenção “Violência contra crianças e adolescentes: intervenções possíveis junto à rede de educação”. A intervenção foi realizada em três escolas do município de Irati-PR, sendo duas municipais e uma estadual, e foi direcionada aos profissionais e servidores das escolas, totalizando 66 profissionais. Teve como objetivo apresentar e explicar os tipos de violência contra a criança e o adolescente, como identificar essas violências, apresentar o funcionamento da rede no município e quais são os encaminhamentos sobre a revelação espontânea de violência e escuta especializada. Para isso, utilizou-se a estratégia de discussão de caso e dinâmicas grupais, com a duração de um encontro de aproximadamente 4 horas. Ao final dos encontros foi aberto um espaço para debate, dúvidas e demandas dos profissionais, proporcionando acolhimento às dificuldades dos trabalhadores e possíveis orientações.
Este relato de experiência buscou trazer, a partir desta intervenção, a vivência em um projeto de extensão e a sua articulação com a rede do município, de modo que a atuação ultrapassa as barreiras entre os serviços e dá materialidade para a rede de proteção à infância e juventude do município, a partir de ações preventivas com profissionais que caracterizam a linha de frente no que diz respeito à escuta e identificação de violências contra a criança e adolescente.
A escola assume uma posição de grande relevância na identificação de violências contra crianças e adolescentes, pois as professoras fazem parte significativa do cotidiano dos(as) jovens e podem identificar mudanças de padrões de comportamento que correspondam a situações de violência (Costa, Garbin, & Garbin, 2008). Ao estarem em situação de violência, as crianças e adolescentes demonstram em suas ações, sendo irritabilidade, choro, desatenção, isolamento, baixo rendimento acadêmico, dentre outras mudanças de comportamento, sinais de alerta (Costa, Garbin, & Garbin, 2008). Entretanto, é importante ressaltar que cada criança é única e possui suas características, sendo importante que a professora avalie mudanças significativas em cada criança e/ou adolescente.
Levando estes pontos em consideração, conforme previamente mencionado, a proposta do curso objetivou discutir os diversos tipos de violência, como identificar, quais providências tomar e a apresentação da rede de proteção do município. A metodologia utilizada visou promover o diálogo e interação das professoras, sendo que as atividades desenvolvidas englobaram dinâmicas e momentos de discussão. A primeira atividade consistiu apresentação de um caso fictício, seguido de discussão, e um momento de explanação e psicoeducação a respeito das diversas violências que haviam sido apresentadas, como violência física, sexual, psicológica, institucional, negligência e trabalho infantil. A violência que mais gerou dúvidas foi a institucional, por se tratar de uma forma de violência ainda pouco divulgada, falada e consequentemente, identificada. A partir da explicação sobre essa forma de violência, houve a participação das professoras e compartilhamento de relatos de casos semelhantes que elas haviam presenciado, produzindo um momento de acolhimento e familiarização da discussão.
Após a discussão do caso e das violências, foram apresentados os sinais e como identificar violências. Esta parte da formação contou com o desenvolvimento de um caça-palavras, visando tornar a proposta mais dinâmica, em que as participantes precisavam achar alguns sinais de violência na atividade, as quais nortearam a discussão. Os sinais que compuseram a atividade foram desinteresse, desatenção, isolamento, choro, agitação, irritabilidade e hiperssexualização (Costa, Garbin, & Garbin, 2008). Estes sinais foram escolhidos para disparar a discussão de formas de identificar situações de violência, mas sempre ressaltando que cada criança e cada adolescentes possui suas próprias características, e é necessário que haja uma avaliação individualizada da presença desses comportamentos.
Além da identificação sobre as formas de violência reconhecer e conhecer sobre os efeitos das violências a curto e longo prazo em crianças e adolescentes, e do quanto podem deixar marcas significativas no corpo e na subjetividade, no modo como vão compreender a realidade e no futuros modos de se relacionar. Os efeitos dependem muito do tempo que a criança esteve nessa situação, qual a frequência das violências, e quais as condições que ela possui (Assis, Constantino, & Avanci, 2010).
Para que se criem práticas de proteção às crianças e adolescentes faz-se necessário compreender e conhecer os pontos da rede de proteção, a função dos serviços e o que existe em cada município. Dessa forma, a segunda parte do curso consistiu em apresentar e explicar o funcionamento da rede de proteção e o que fazer nos casos de violências. O que se percebeu no primeiro momento, foi a dificuldade de entender a atuação de cada equipamento da rede e sua atuação integrada, as educadoras conseguiam distinguir a ação isolada de cada equipamento, mas não a importância da ação conjunta. Entende-se o conceito de Rede como “um tecido de relações que são estabelecidas a partir de uma finalidade em comum e se interconectam por ações em conjunto” (Rizzini, 2006, p. 111-112).”. Rede é algo vivido, que deve ser tecido a cada momento, portanto, volátil, que pode e deve ser mudado, considerando os seus nós. O que percebeu-se é que mesmo sendo uma dos principais serviços na rede, na notificação de violência, os professores não se sentiam pertencentes a ela.
Notou-se, também, que as educadoras entendiam o seu papel na proteção dos direitos de crianças e adolescentes, porém vinculados somente ao encaminhamento. Por exemplo, quando questionados o que fariam frente a uma situação de violência e quais serviços acionariam, a resposta foi quase unânime: o Conselho Tutelar. Apontando que este serviço, em seu entendimento, seria o principal responsável pelo recebimento, proteção e encaminhamento do casos. Entretanto, para garantir a defesa integral dos direitos, todos os serviços da rede devem trabalhar de forma articulada, “É a partir da interação entre as diversas instituições que se oferecerá um atendimento completo à criança, ao adolescente e a suas famílias, conforme adotado pelo ECA, no seu artigo 86” (Silva & Alberto, 2019, p.7). Quando os serviços atuam de forma individual, corre o risco de revitimização e a falta de acesso, porém a falta de capacitação dos atores da rede e momentos de discussão sobre o tema, acaba por perpetuar essa prática.
Os espaços formativos configuram-se momentos de pausa e investimento nesses sujeitos que atuam diretamente com crianças e adolescentes. No cotidiano de trabalho muitas vezes não há espaço para reflexões e troca de experiências, por isso espaços onde o conhecimento circula proporciona o engajamento e discussão. Foi possível escutar algumas profissionais que falavam sobre suas percepções, ora havendo concordância ora discordância, principalmente referente aos tipos de violência que estava ocorrendo nas situações apresentadas pela equipe formadora, bem como sobre o que fazer quando se ouve um relato de violência. Dessa maneira, ressaltamos o quanto a metodologia adotada permitiu que as percepções e conhecimento sobre as violências emergissem convocando as profissionais a participarem.
A maioria das educadoras e profissionais comentaram a presença de sentimentos como impotência frente a casos de violência. Palavras como se sentir “presa” fizeram parte da discussão, além da exposição de sentimentos como tristeza e medo, pois as participantes afirmaram possuir receio de não saber agir e ocasionar mais mal à criança. A principal dúvida estava localizada no que fazer e como encaminhar, sendo que durante os dias de formação elas puderam realizar questões importantes que foram sendo respondidas. O tema da escuta especializada era desconhecido para elas, o que nos faz pensar o quanto precisamos avançar na formação de todas as pessoas que compõem a rede de proteção à infância e adolescência.
É importante pensar nas singularidades das escolas, pois mesmo utilizando o mesmo roteiro e base para as formações, é importante observar a demanda de cada local, dependendo de como as lógicas se estabelecem em cada lugar. Isso porque duas escolas tinham mais condições materiais e físicas, enquanto outra não, bem como os/as alunos/as de uma das escolas viviam em maior vulnerabilidade social que as outras. Além disso, a visão de infância e os problemas enfrentados não são iguais, porque mesmo estando localizadas na mesma cidade, as infâncias são vividas de formas diferentes, elas são atravessadas por questões sociais, culturais, de raça e gênero, além da maneira de acesso ao serviços básicos de assistência social e de saúde.
Durante os encontros, foi perceptível que o período pandêmico trouxe muitos desafios. Para os professores, a dificuldade em se adaptar com as aulas online, o aumento da carga de trabalho, a cobrança de pais e coordenadores. Para os alunos, a dificuldade de aprendizagem, a falta de interação social, e o aumento do número de violências, ou a dificuldade de solicitar ajuda. A dimensão de um período vivido pelas crianças e adolescentes próximo aos seus agressores, no espaço privado, começa emergir no retorno presencial das atividades escolares, necessitando organizar ações e acolher esse público.
A oferta de um espaço de formação e escuta é uma estratégia para recompor ações protetivas junto à rede de educação. As dificuldades compartilhadas perpassam questões sobre o que fazer, ou como lidar com a situação, e as implicações que um assunto tão complexo, quanto a violação de direitos, têm sobre cada um de nós. O espaço grupal permitiu que houvesse compartilhamento de emoções, concepções, estratégias e ações diante das situações de violências.
Os encontros de formação junto a rede de educação seguirão acontecendo e buscam atingir outras escolas do município, mas é necessário, também, que a gestão pública se responsabilize em criar um programa de educação permanente para todas as profissionais da rede de proteção, para auxiliar no manejo e enfrentamento destas situações, priorizando a proteção integral de crianças e adolescentes.
Referências
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